Rafael Monteiro: centenário do seu nascimento

Rafael Monteiro nasceu na vila de Sesimbra em 18 de Maio de 1921 e o jornal O Sesimbrense, bem como a Liga dos Amigos de Sesimbra, assinalam o centenário do seu nascimento, em reconhecimento da incomensurável dedicação que votou à sua terra.
Faleceu em 20 de Fevereiro de 1993 no Sanatório do Barro, perto de Torres Vedras, onde se encontrava internado como doente. Foi sepultado em Sesimbra.
As limitações familiares e da sociedade não lhe permitiram levar os estudos oficiais para além dos quatro anos de escolaridade obrigatória na sua infância. No entanto, pela sua inteligência e dedicação acumulou um imenso conhecimento, nomeadamente sobre Sesimbra – a sua história, mas também a natureza das suas gentes – que com igual dedicação partilhou, em estudos que realizou, em livros e artigos que foi publicando ao longo da vida. Desenvolveu, como autodidacta, a actividade de etnólogo, de arqueólogo, de paleontólogo e de historiador: actividades sempre focadas na terra que o viu nascer. Foi funcionário público, pior pago do que os restantes, porque lhe pagavam miseravelmente: mesmo assim desenvolveu um trabalho pioneiro na constituição da biblioteca e do arquivo municipais: ainda hoje, muita da classificação da documentação histórica de Sesimbra tem a sua marca e está metodicamente identificada com a sua elegante caligrafia.
A sua contribuição para o jornal O Sesimbrense foi igualmente valiosa, generosa e tão numerosa que se torna impossível de rastrear num simples artigo como o presente.

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     A sua mãe, Etelvina Alves Monteiro, dava escola a crianças na sua modesta casa particular, única fonte de rendimento familiar, já que Rafael nunca soube quem foi o seu pai. Não se tratava dum ensino oficial, mas um antecedente dos jardins de infância e do actual pré-escolar, que igualmente servia para ocupar as crianças fora do ensino oficial.
Rafael destacou-se como um excelente aluno na escola primária, tendo colaborado no jornal O Infantil que se publicou na Escola Conde de Ferreira. Começou a vida profissional na Farmácia Leão, trabalho em que revelou enorme competência, tornando-se ajudante-técnico de farmácia.
Foi fundador e impulsionador da Mocidade Portuguesa em Sesimbra. O facto de ter escrito para O Sesimbrense diversos artigos nesse período, permite-nos fazer uma ideia do seu pensamento na altura, alinhado nos ideais do nacionalismo e do patriotismo, bem como do fortalecimento moral e físico da juventude, do sentido de serviço público e de subordinação à autoridade. Acontece que em Sesimbra os jovens liderados por Rafael Monteiro levaram a lição à letra, de tal forma que acabariam, mais tarde, por afrontar – especialmente o Rafael – a expressão local do corporativismo salazarista, por não ser coerente com os elevados princípios éticos e morais que apregoava.


Uma das primeiras acções dos jovens da Mocidade Portuguesa sesimbrense foi a de colaborar com a Câmara no levantamento dos estragos provocados pelo ciclone de Fevereiro de 1941, trabalho feito com tal rapidez e rigor que mereceu os elogios do Governo Civil: um trabalho realizado por um grupo de jovens adolescentes, que se revelou mais célere e mais completo do que o realizado noutros concelhos.
Foi neste contexto que Rafael chamou a atenção do então responsável máximo pela MP, Marcelo Caetano. Impressionado com os escritos do jovem Rafael, quis conhecê-lo e até ajudá-lo a tirar um curso superior, tendo ficado muito surpreendido por saber que apenas tinha a quarta classe!
Rafael Monteiro aderiu aos ideais nacionalistas e corporativistas do Estado Novo, tornando-se num admirador e defensor de Salazar. A crença ideológica nesses ideais era genuína e sólida, mas ele idealizava o regime político perfeito como sendo o da Monarquia que vigorara até à implantação do Liberalismo, por volta de 1820. Rafael acreditava que, nesse tempo, “as lágrimas de uns eram as lágrimas de todos” (1), e que foram o Liberalismo e o Capitalismo quem quebrara o equilíbrio em que a sociedade vivera até então.
A ligação de Rafael Monteiro à Câmara Municipal de Sesimbra foi particularmente profícua no período da presidência de José Braz Roquete (1948-1957). Foi neste período que trabalhou intensamente na organização da Biblioteca e do Arquivo Municipal. Após a constituição da Liga dos Amigos de Sesimbra, a Câmara apoiou organização na promoção de diversas iniciativas, na área da cultura e da promoção turística. Uma destas iniciativas foi a realização de um Curso de Guias Turísticos, em 1952, curso este leccionado por Rafael Monteiro. Foi também por iniciativa da Liga que foi equipado o Parque de Campismo do Forte do Cavalo, o primeiro parque de campismo municipal que existiu em Portugal. Outra importante obra da Liga foi a organização e direcção do Museu Arqueológico Municipal, que seria inaugurado em 1960. Em todas as iniciativas o papel de Rafael Monteiro foi determinante, na companhia de outros sesimbrense de que é justo destacar os irmãos António e Francisco Reis Marques.
Porém, as instituições do regime salazarista, apesar de se assumirem formalmente como nacionalistas e corporativistas, não praticavam a pureza desses ideais, o que levou Rafael Monteiro a entrar frequentemente em choque com os homens e as instituições do Estado Novo.
Dois dos livros escritos por Rafael Monteiro revelam justamente estas contradições: a “Memória Breve sobre o pescar de Arrasto” (1950) e “A Verdade sobre os limites dos concelhos de Sesimbra, Almada e Seixal” (de 1970) – livros que são o resultado de aturados estudos e penosas investigações. No primeiro dessas obras, Rafael combateu a pesca de arrasto como uma prática profundamente nociva – algo que a ciência acabaria por vir a confirmar. Porém, ao combater essa técnica de pesca, Rafael estava igualmente a afrontar um dos pilares do régie salazarista: Henrique Tenreiro e a sua poderosa constelação de empresas de pesca, associada à organização das Casas dos Pescadores.


Com “A Verdade sobre os limites dos concelhos de Sesimbra, Almada e Seixal” Rafael Monteiro provou exaustivamente que as manobras, impulsionadas por interesses ocultos, para retirar pedaços do concelho de Sesimbra para os entregar a Almada e ao Seixal, careciam de fundamento histórico e constituiam uma afronta ao povo sesimbrense. Juntou nesse livro um impressionante manancial de argumentos e documentos históricos – mas tudo foi em vão: em 1972, o presidente da Câmara da altura, que na sua tomada de posse afirmara que o poder não se poderia identificar “com baratos e mesquinhos filósofos” (2) (referência ao Rafael) decidiu que Sesimbra não iria contestar esse roubo do seu território, posição que Rafael Monteiro contestou publicamente, tendo, em protesto, rescindido o contrato que o ligava â Camara Municipal.
Eis o paradoxo: o admirador de Salazar e do corporativismo denunciava os crimes do Estado Novo como nenhum outro sesimbrense opositor ao regime jamais tinha feito ou viria a fazer.
Mas o Rafael não desistia facilmente. No ano seguinte, apoiando-se na autoridade científica e na influência que o francês Pierre Clostermann poderia ter junto do regime, conduziu uma campanha para a criação do Parque Marítimo da Baía de Sesimbra, de modo a poder retirar as águas costeiras sesimbrenses da influência nefasta da pesca de arrasto, da apanha de algas, da caça submarina e das fontes de poluição marinha. A proposta de criação desta área protegida – mais uma iniciativa em que Rafael foi pioneiro – foi entregue ao Governo no início de 1974 – mas acabaria por ficar esquecida na turbulência dos anos que se seguiram à Revolução de Abril desse ano.
Uma área a que Rafael Monteiro se dedicou com particular afinco foi à consulta da documentação histórica, tendo descoberto e divulgado numerosos documentos de grande relevo para a história de Sesimbra, entre os quais se destaca a descoberta, no acervo da documentação existente na Misericórdia de Sesimbra, do testamento do navegador Sebastião Rodrigues Soromenho, provando assim a sua naturalidade sesimbrense.
Soromenho é o mais famoso, mas foram muitos mais os mareantes sesimbrenses participantes na grande aventura marítima, nomeadamente como pilotos ou capitães, que Rafael revelou na sua publicação de 1961, “Alguns mareantes desconhecidos da terra de Sesimbra” – “resultado pobre de mais de 20 anos de longas e pacientes buscas”, segundo as suas próprias palavras.

Outra área em que deixou a sua marca foi na arqueologia, tendo sido ele próprio o descobridor de algumas das primeiras estações arqueológicas de Sesimbra, em cujas investigações igualmente participou, na companhia de eminentes arqueólogos, nomeadamente na Lapa do Bugio – “Estação Isabel”, cujo valor arqueológico foi por ele descoberto em 16 de Outubro de 1957.

Rafael Monteiro e a imprensa

Rafael, apenas com 15 anos, começou por enviar correspondências, por sua iniciativa, para o jornal O Século, até que descobriram que não sequer tinha idade para poder ser correspondente. Foi correspondente do jornal Diário Popular, onde foi o primeiro a receber o galardão de “correspondente do ano”. Foi igualmente um esteio no jornal O Sesimbrense, onde começou a escrever logo no início da década de 1940. Foi um dos fundadores da Liga dos Amigos de Sesimbra, constituída em 1951, expressamente para dar continuidade à publicação deste jornal. Sem nunca ter assumido formalmente qualquer cargo, foi ele o responsável por muitas edições e por muitas páginas deste periódico, como eu próprio testemunhei em 1973, quando também me tornei um colaborador: era apenas do Rafael que recebia orientações, enquanto que o Director por lá aparecia muito esporadicamente.
Esta ligação íntima de Rafael ao jornal O Sesimbrense terminou após a revolução de 1974, quando o jornal entrou num processo de grande instabilidade, que levaria mesmo à suspensão da sua publicação, no final desse ano e por um longo período. Mas Rafael Monteiro continuou a sua colaboração na imprensa local, nomeadamente através de outro jornal local, o Raio de Luz.
No entanto, uma das iniciativas mais marcantes de Rafael no mundo da imprensa foi a fundação do jornal Bombordo, de que se publicaram 10 números, entre Agosto e Outubro de 1948.
A observação do modo como viviam em Lisboa milhares de jovens, atraídos para a capital â procura de trabalho, mas aqui explorados e sofrendo fora do contexto familiar, levou-o a fundar esse jornal, que visava melhorar as condições desses jovens, através da constituição dum movimento que os organizasse.
A primeira edição do jornal saiu em Agosto de 1948. e nele se prometia que “nunca deixaremos de lutar por aquela já tão estafada, criticada e deturpada, Justiça Social”. Um dos problemas abordados pelo jornal era o dos referidos rapazes, atraídos da província para Lisboa, à procura de trabalho, mas que depois acabavam por cair na vagabundagem e na miséria, longe do apoio da família, rapazes cuja vida “Começa assim e acaba de vários modos: regresso ao lar, tarimba de prisão, venda de jornais ou morte prematura”. Na sequência destas preocupações, Rafael Monteiro promoveu a criação de uma instituição para protecção dos Rapazes da Rua, equivalente à que fora criada na América pelo padre Edward Flanagan, organização que se chegou a constituir, sendo depois integrada nas estruturas da Segurança Social.
Mas tratava-se de uma preocupação antiga pois já em 1944 Rafael Monteiro anunciara a preparação do livro “Rapazes da Cidade”, “onde se conta a miséria grande da cidade de Lisboa, em pequenas e verdadeiras histórias”. (3)
O Bombordo, no entanto, acabaria por ser encerrado por determinação das autoridades, com Rafael a ser admoestado pela PIDE e o jornal apreendido.

A Filosofia como guia

Para além da insistente busca sobre a história e a identidade de Sesimbra, Rafael Monteiro aprofundou os seus conhecimentos de Filosofia, que o levaram à leitura do filósofo Álvaro Ribeiro, que o marcaria profundamente, como ele próprio testemunhou:

“A um amigo, bom amigo, devo a leitura da ‘Arte de Filosofar’ [de Álvaro Ribeiro]. Pensei e meditei essas páginas, algumas para mim bem difíceis, mas nelas encontrei uma verdade de que já havia suspeitado na leitura de Bruno, Junqueiro, Pascoais e Pessoa. E veio o dia em que li “A Razão Animada” [também de Álvaro Ribeiro]. Nela encontrei o caminho de regresso a Deus, e o elemento mediador que buscava: o Verbo!” (4)

     A residência de Rafael, no castelo de Sesimbra, tornou-se então um centro de reflexão filosófica, onde frequentemente se reuniam muitos amigos e admiradores do estudioso sesimbrense. Segundo António Reis Marques, essa residência tonar-se-ia numa “cidadela da cultura sesimbrense, onde se realizaram serões memoráveis, e foi centro de convívio e ponto de encontro de algumas das mais eminentes figuras das artes e das letras nacionais” (5).
Uma das pessoas em que Rafael Monteiro deixou uma forte impressão foi o cantor brasileiro Caetano Veloso, que esteve em sua casa no período em que passou por Portugal, a caminho de Londres, em 1969, para um exílio imposto pela ditadura militar brasileira. Caetano, que conhecia um pouco das ideias dos pensadores portugueses através de Agostinho da Silva, que leccionara na universidade da sua Baía natal, ficou de tal modo impressionado pela conversa com Rafael Monteiro que recordou o episódio no seu livro de 1997, “Verdade Tropical”.
Foi nessa casa que o conheci, em 1973, quando comecei precisamente a colaborar no jornal O Sesimbrense, integrado na campanha para a constituição do Parque Marítimo da Baía de Sesimbra. No mesmo dia em que travámos conhecimento, generosamente me emprestou vários livros sobre a história de Sesimbra – uma generosidade que aqui quero testemunhar, e que manteve ao longo da sua vida.

João Augusto Aldeia

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Notas
(1) “Esclarecimento da história da vila piscatória de Sesimbra”, – jornal O Sesimbrense, 16 de Setembro de 1973 (Caderno 2), pág. 8.
(2) Jornal O Sesimbrese, 24 de Março de 1972, pág. 3.
(3) Jornal O Sesimbrense de 21 de Dezembro de 1944, pág. 3. Rarael identifica-se aqui com o seu pseudónimo Preto Vogado.
(4) “Depoimento”, in “Alguns mareantes desconhecidos da terra de Sesimbra e outros textos”, 2001, pág. 131.
(5) António Reis Marques, idem, pág. 147.

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Director do jornal O Sesimbrense