Manicómio

Como é sabido, o desígnio do Carnaval todo o ano foi um dos triunfos emergentes da tragédia local de 2005. E daí que, após o benigno interregno que a pandemia, neste domínio, nos trouxera, o inefável Megasamba tenha, de novo, vindo fazer o inferno na vila de Sesimbra nos derradeiros dias de Julho, sempre com o incondicional apoio camarário. A edilidade chegou mesmo ao ponto de difundir, nas redes sociais, um vídeo breve com exortações sapientes e ufanas de dois pontífices da coisa, um deles asseverando que este – o samba – era o nosso folclore. Terra prodigiosa esta, cujo município consegue, em menos de um nada, dar-nos óperas por bailados, inventar caravelas chegadas de um qualquer mundo paralelo e até reescrever uma crónica etnológica velha de séculos!
No meio deste desvairo rilhafolesco, Nélson Pólvora, o primeiro eleito, o ex-futuro líder da oposição, foi visto, nas mesmas redes sociais, a prestar um tributo devoto aos eflúvios sonoros de estirpe passista. O que após o fim da longa noite do esequielinismo se traduzira em ruptura exigente e ambiciosa com um passado de indigência ou inferioridade no domínio cultural vê-se agora renegado por um suposto sequaz desse movimento. Alguém, caridoso, lhe devia explicar que os eleitores deploram as cópias e preferem os originais…
Felizmente, a preclara Dr.ª Maria Gomes, vígil do alto das ameias do seu Castelo, soube manter-se à margem do desnorte colectivo e, num rasgo sagaz, quando o querido mês de Agosto corria pelo meado, restituiu as tradições campesinas autóctones à integridade autêntica das suas origens. Não estou, porém, seguro de que este scherzo estival não seja, ainda e sempre, em última instância um afloramento tardio do famigerado “Carnaval todo o ano”. Bem pode a autarca ir brincar às aldeias para Alfarim quando a sede da sua freguesia, ainda dita rural, e os lugares da vasta conurbação que nela se entronca, gemem, década após década, sob o peso de um trânsito pavoroso deslizando sobre vias com traçados medonhos, pisos miseráveis e entroncamentos de roleta russa. Com efeito, a ruralidade de museu que a festiva Dr.ª Maria Gomes se compraz agora em fazer desfilar há muito que deu lugar a um mundo urbano complexo e exigente. Talvez um destes dias a Dr.ª Maria Gomes decida enfim brincar aos autarcas reivindicativos e exigir algo mais àqueles a quem, como boa compagne de route, segue os passos em volta. Levam quase meio século de responsabilidades assumidas no planeamento urbanístico do concelho e pouco menos de quatro décadas com a mão posta no timão das obras municipais, mas após um lustro bem contado não lograram ainda a construção de uma rotunda no coração da sua freguesia…
Entretanto, com o cordial beneplácito camarário, um suposto colectivo internacional denominado Acción Poetica, tem andado a espichar palavras nas paredes e nos muros do concelho, nelas inscrevendo frases de fino recorte literário e profundo alcance teorético, tais como: «Não procures encaixar-te se nasceste para te destacar!!!» ou «Não pares até te orgulhares de ti!!!». Bem sei que qualquer destas sentenças calará fundo na alma do Presidente Jesus, ainda que, com respeito à segunda, pelo que se tem visto da sua acção autárquica, se lhe depare ainda um longo caminho. O problema é que, para nossa absoluta desgraça, o Presidente Jesus está convencido (e não sei de quem lhe possa valer) de que tais dizeres são uma real criação poética; e convencido está de que, longe de representarem um incentivo à poluição visual e até ao vandalismo, promovem realmente a literatura. Pessoalmente, sou de outro parecer: estou pelo contrário convencido de que vivemos num manicómio.

Pedro Martins

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Director do jornal O Sesimbrense