Retornar a Sesimbra – último quartel do século XX

José Freire Vaz

Ao aventurarmo-nos retrospetivamente neste espaço temporal, devemos em primeiro lugar apontar os seus habitantes que, geograficamente são de há muito conhecidos por “Pexitos” e “Camponeses”, sendo que os primeiros se reportam aos naturais da vila de Sesimbra e se confundem com a freguesia de Santiago tendo a sua vida orientada para o mar e os segundos moradores na freguesia do Castelo que se dedicam ao cultivo dos campos, não podendo esquecer também os outros, provenientes de outras paragens que por variadas condicionantes resolveram adotar este concelho como sua morada definitiva e onde podemos incluir a recente e mais populosa freguesia da Quinta do Conde (1985).

Sem nos dissociarmos dos acontecimentos mais relevantes a nível nacional que tiveram lugar neste período, procura este texto observar genericamente a evolução do modo de vida dos seus habitantes. Embora consideremos que os conceitos primordiais em qualquer tipo de estudo com esta formulação partam temporalmente de balizas preestabelecidas, não poderemos nunca deixar de envolver períodos anteriores e posteriores, para assim melhor conseguirmos compreender e analisar o agora proposto.

Assim, no sentido de melhor situar as gentes deste concelho e onde também, como inicialmente referido, podemos observar a oposição entre o meio urbano e o campestre, mais notória com o aparecimento da sociedade industrial, serão relatados alguns episódios que temporalmente, por certo, ajudarão ao anunciado retorno.

Desde os finais da década de 60, começamos a notar um aumento populacional na zona de Sesimbra o que significativamente se manifestou não só pela abertura de novas agências bancárias, casos do Banco Pinto & Sotto Mayor (atual Milleniun BCP), do Banco Fonsecas & Burnay (agora BPI) e do Banco Nacional Ultramarino (hoje Caixa Geral de Depósitos), como pela manifesta necessidade de alterar e definir novas normas urbanísticas do concelho que criaram problemas relacionados com a especulação dos terrenos. Também o aparecimento de novos estabelecimentos comerciais dedicados às mais variadas atividades foi disso exemplo

Paralelamente e, em contraponto assistimos a uma crescente preocupação com o bem-estar da população rural, manifestada pela necessidade da sua fixação tendo por lema “uma casa para cada família”, procurando combater a constante emigração, aventando-se em 1969 a hipótese da construção de um lar com as devidas condições para o seu acolhimento.

O aumento da população interfere obviamente com as suas próprias exigências como é exemplo o pedido de abertura de uma nova estação dos CTT em Santana (freguesia do Castelo) concretizada em 1972, a que podemos acrescentar a aprovação da construção do Novo Bairro dos Pescadores (freguesia de Santiago) em 1971. Esta evolução verificada já no decurso dos anos 70 foi particularmente marcante e influenciada por alguns episódios que sociologicamente, hoje à distância, melhor poderão ser analisados.

No início do período, ainda no rescaldo do fim da indústria conserveira com tradição milenar, e que durante décadas tinha sido um dos polos mais atrativos da região na manutenção de postos de trabalho, fruto da sua deslocalização para norte e sul do território nacional, encontramos fábricas e armazéns abandonados em resultado do já referido declínio a que a indústria conserveira tinha sido votada a partir de meados do século, iniciando o seu retrocesso logo após a 2ª Grande Guerra Mundial. De salientar o facto de nesta vila terem chegado a existir em plena laboração 14 fábricas de conserva de peixe que trabalhavam espécies entre outras, como a sardinha, o carapau, o atum, a cavala e o espadarte, tendo a última destas unidades (“A Primorosa”), encerrado as suas portas em 1961. O desemprego causado por estes encerramentos vai na década seguinte (anos 70) dar lugar ao grande aproveitamento do pescado cuja captura passou a ser canalizada na sua quase totalidade para outros pontos do país onde o seu consumo fresco ou em conserva era (e é), devido à sua qualidade, bastante apreciado.

O excesso de capturas aliado à falta de compradores, ou por a lota de Sesimbra se encontrar encerrada (fins de semana) resultava muitas vezes na sua destruição sendo devolvidas ao mar espécies como a sardinha, o carapau ou a cavala. Era uma situação considerada inexplicável por ser apontada como atentatória à economia nacional e apesar de repetidamente denunciada, não eram visíveis quaisquer consequências. Assim, a futura crise piscatória que se adivinhava à distância, preconizava o fim da pesca artesanal prejudicada pela pesca de arrasto que provocava a escassez das espécies a que se aliava a apanha indiscriminada de algas, o que levou ao alerta conducente à tomada de medidas para a sua proteção, criando áreas protegidas e compensações monetárias para os pescadores.

Procuraram-se pesqueiros longínquos (Marrocos, Mauritânia) pois o preço do peixe era inflacionado pelos intermediários causando dificuldades ao seu escoamento, nomeadamente para a exportação o que levou à criação do Parque Marítimo de Sesimbra cujo pedido de promulgação reporta a janeiro de 1974. Nesta sequência, a recuperação das pescas é um facto notório nos finais dos anos 70 e no início dos anos 80, salientando-se a importância de Sesimbra no âmbito da pesca nacional e no seu rico potencial pelo facto da existência na altura de cerca de 3.000 pescadores onde 70% teriam idades inferiores a 40 anos. Podemos deste modo afirmar sem margem para dúvidas que nos anos 70 vamos encontrar em Sesimbra o auge das pescas com plena integração populacional assistindo a um facto jamais repetido que consistia na existência de duas companhas [população (mar e terra) de uma embarcação de pesca] por embarcação, uma no mar e outra em terra no amanho da aparelhagem, o que potenciava a frota em 100% do seu aproveitamento.

Sesimbra era considerada a Sede da Zona Centro dos Serviços das Cotas e Vendagens, ocupando o 2º lugar em termos nacionais a seguir a Peniche, apresentando a sua lota, sucessivos recordes de vendas, ao que não estará alheio o alargamento do seu porto em 1979. Os vendedores de peixe que normalmente também eram pescadores, junto das suas bancas ofereciam aos seus clientes habituais, cavacas [crustáceo também conhecido como “lagosta da pedra”, vulgar na ilha da Madeira] que apanhavam nas redes, espécie muito apreciada e rara para o comum dos compradores.

Nesta década era também frequente, o aluguer de casas de habitação dos residentes (pescadores e não só) na altura do verão no sentido de tirarem algum proveito monetário não se importando de permanecer nesses períodos em casas de familiares ou em garagens adaptadas. Refira-se o facto de muitas vezes estes “turistas nacionais” serem presenteados com baldes de peixe deixados às suas portas como forma de reconhecimento dos donos das casas e que muitas vezes as reservavam para o ano seguinte. Nesta vertente e a partir da década de 60, assistimos de uma forma sustentada ao crescente aumento do número de turistas estrangeiros.

Na década seguinte e, também fruto da projeção que o país tinha adquirido após a Revolução de abril de 1974, este número foi aumentando, assistindo Sesimbra à vinda de inúmeros cidadãos particularmente do norte da Europa (Escandinávia) em busca de paragens consideradas paradisíacas com um povo aberto e acolhedor e onde a qualidade da praia rica em iodo, era um ótimo cartão-de-visita. Rapidamente a viragem para o fenómeno turístico que estes fluxos prenunciavam, obrigava os governantes à necessidade da preservação do património histórico e artístico existente e em grande parte abandonado e esquecido (Castelo, Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel, Fortaleza de Santiago, Forte do Cavalo) com consequente orçamentação de despesas próprias. Começaram a surgir referências em publicações internacionais que aliavam a beleza natural a unidades a eleger, nomeadamente o Hotel do Mar, a Pastelaria Central (Tomé), a Marisqueira (Tony), para além do Hotel Espadarte (atual Sana Hotel) que apresentava à sua frente junto à praia, um pórtico onde eram expostos exemplares dos peixes capturados, particularmente espadartes que serviam de atração aos veraneantes que não perdiam a oportunidade de os fotografar.

Evidentemente que toda esta aglomeração sazonal que também já começava a ser permanente, acarretou problemas de saneamento tanto na vila como no campo, sendo as mais notórias as verificadas junto à Fortaleza com os esgotos a desaguarem na praia. Refira-se que as Comissões Administrativas em vigor no período de 1974 a 1976 se depararam com a aflitiva incapacidade das infraestruturas existentes (água, luz, saneamento, rede viária) e dos equipamentos (educação, saúde, desporto) bem como na débil aposta no turismo. Em 1974 só a vila de Sesimbra (freguesia de Santiago), tinha assegurado o abastecimento público de água e de energia elétrica, ficando praticamente todo o restante concelho alheio a estes bens primordiais. Era, na verdadeira acessão da palavra, um concelho periférico com pouco mais de 20.000 habitantes em contraste com a atualidade onde se encontra já perfeitamente integrado na Área Metropolitana de Lisboa com 49.500 residentes (sensos de 2011).

De salientar a importância do Poder Local, visível após as primeiras eleições autárquicas livres realizadas em 12 de dezembro de 1976, alicerçado na criação de instrumentos de apoio conducentes à gestão responsável do território onde se destacam a Lei das Autarquias (L. 79/77) e a Lei das Finanças Locais (L. 1/79) para além dos Planos Diretores Municipais (DL. 208/82).

Num outro contexto pela sua atualidade, há a realçar a recente freguesia da Quinta do Conde resultante de vários fluxos migratórios onde a abertura da Ponte sobre o Tejo (antiga “Salazar”, hoje “25 de abril”) em 1966, facilitou a vinda de elevado número de população empregada nas grandes empresas da margem sul do Tejo como eram os casos da Lisnave, Setenave, Siderurgia Nacional e da CUF (Companhia União Fabril) a que juntamos a crise no setor da habitação e a permissibilidade da legislação à época em vigor. Associada a estas migrações, assistimos a um grande aumento na construção civil assim como a ocupação desenfreada dos espaços rurais, situação particularmente notória a partir de meados dos anos 70. As necessidades de novos processos de planeamento emergem a partir de 1975/77, obrigatoriamente conducentes à reconversão dos denominados loteamentos “clandestinos”. Neste processo será de realçar a importante participação dos proprietários dos terrenos e da Comissão de Moradores na redefinição da área da nova freguesia, como sucedeu algumas vezes na comparticipação monetária da população, caso do início das obras de abastecimento de água em 1978. A especulação verificada no negócio dos loteamentos e respetivas vendas atingiu o seu cume até meados desta referida década de 70, surgindo neste processo a incontornável figura de António Xavier de Lima (1926 – 2009),

considerado especulador para uns e benemérito para outros, situação que só veio a ser alterada após o 25 de abril de 1974. Embora frequentemente durante esta década tenha sido referenciada como viável a criação desta freguesia, só em 1985 é assumida como tal com a publicação no Diário da República (L. 83/85), passando mais tarde a ter o estatuto de vila em 1995 (L. 73/95). Hoje é a freguesia mais populosa do concelho com mais de metade dos seus residentes.

Ao nível geral do concelho, fruto dos bons resultados económicos provenientes do setor das pescas a que se aliava alguma facilidade na concessão de crédito por parte das instituições bancárias, encontramos boa parte dos habitantes a optar pela aquisição de casa própria o que levou ao rápido crescimento do ramo da construção civil e todo o mundo nela interligado, surgindo a freguesia do Castelo com as suas pedreiras e areeiros prontos a serem intensivamente explorados, por vezes de forma anárquica, alterando a paisagem e o ambiente onde se localizam.

Neste período, assistimos a alguns fenómenos da nossa história contemporânea que marcaram e interferiram na demografia de Portugal e que se refletiram em maior ou menor grau em todo o seu território. O final da Guerra Colonial e a posterior receção e integração dos portugueses residentes nas ex-colónias que coincidiu com a já referida especulação imobiliária registada e que posteriormente deu lugar ao surgimento da chamada Lei das AUGI (L. 91/95 de 2 de setembro). AUGI designação atribuída às “Áreas Urbanas de Génese Ilegal” reportadas a uma inúmera quantidade de parcelas de terreno destinadas à construção clandestina, com risco calculado, que surgiram em todo o território nacional, particularmente nas áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto e que se apresentavam como um patamar superior aos primeiros bairros de lata.

Refira-se que este problema que já vinha sendo referenciado desde o início da década de 60 obrigou em 1965 ao 1º Diploma Legal (D. L. nº. 46.673 de 29 de novembro) que fazia depender das Câmaras Municipais o parcelamento dos solos (loteamentos) com garantias da existência de infraestruturas urbanísticas. Sendo considerada uma Lei excecional com o propósito da reconversão urbanística e da legalização do já construído, obrigou a um novo regime jurídico também ele excecional com vista à sua obrigatória regulamentação. É nesta fase de delimitação das AUGI que vamos encontrar os PPR (“Planos de Pormenor de Reconversão”) inovadores pela maior celeridade e flexibilidade na resolução dos problemas. Será de esperar que de futuro, as políticas de planeamento e ordenamento territorial tenham como objetivo a reconversão urbanística que deverá passar pela sua exata, descomprometida e desinteressada planificação, no sentido de poderem reerguer o tecido urbano tão necessário ao bem-estar dos seus habitantes.

É certo que, à época, Portugal sofreu alguns choques que obrigaram a profundas alterações, de que poderemos destacar: 1959 – A entrada na EFTA incentivando as trocas comerciais potencia o aproveitamento dos portos e da construção naval; 1961/74 – A Guerra Colonial e a descoberta da fonte do Turismo; 1974 – A Revolução de abril e a consequente abertura ao exterior; 1986 – O ingresso na CEE surgindo grandes empreendimentos, caso da Autoeuropa.

Numa apreciação mais abrangente e generalizada, é indiscutível que o Portugal de hoje e obviamente o desta região de Sesimbra, se comparado com a segunda metade do século passado, nomeadamente para quem nele viveu, é profundamente diferente. Os progressos que se fizeram sentir em toda a forma de viver, de trabalhar, de participar e de ver o mundo que se foi redescobrindo fazem lembrar os portugueses que no século XVI “deram novos mundos ao mundo”.
A anterior ligação Estado e Igreja era fundamental para a manutenção da situação instalada. Existia oficialmente apenas uma religião, um partido, um livro único escolar e uma censura arbitrária e estúpida vigilante dos costumes… Recordando a este propósito uma frase do então 1º ministro Oliveira Salazar ao dizer: “o povo português vive feliz na sua semi-ignorância”, parecendo assim, aparentemente fácil ao poder controlar a população. Licenças de isqueiro (só existiam a gasolina) e de rádios portáteis (luxos a combater…), a que se juntavam multas para quem atravessasse as ruas das localidades fora das passadeiras de peões, ou a grupos de meia dúzia de pessoas que não dispersassem após ordem policial, ou até mesmo algum beijo de namorados (uma imoralidade…) eram formas degradantes da chamada manutenção da ordem e dos bons costumes. Estas profundas mudanças passaram desde o nascimento assistido (há 50 anos nem um em cada sete partos tinha qualquer assistência médica), à educação (hoje o número de licenciaturas é quase comparável à antiga instrução primária), ao vestuário (igual aos modelos mundiais mais avançados), à alimentação (antes frugal e atualmente com carne, peixe e seus derivados a fazerem parte da dieta diária), ao lazer (disfrutar dos tempos livres/férias era praticamente utópico e apenas comportava deslocações no interior em geral rumo às aldeias donde grande parte da população das cidades era originária), terminando na maior esperança média de vida.

Noutro contexto e agora sob o ponto de vista gastronómico, obviamente que a proximidade do mar, aliada à já salientada ótima qualidade do pescado levou à criação de variadíssimos eventos que passam pelas semanas da cataplana, do espadarte, das caldeiradas, do peixe-espada preto, onde os restaurantes saudavelmente concorrem entre eles no sentido de avaliar a melhor confeção. Se estas dádivas proveem do mar, outras há mais ligadas à terra e ao campo que merecem especial atenção. São o caso das frutas onde as “Maçãs Camoesas” e as “Peras de Inverno” aliadas ao célebre queijo fresco da Azóia, ao excelente mel que os apicultores da região anualmente apresentam na “Zimbra Mel”, não esquecendo bolos como as “Broas de Alfarim”, os “Zimbros” ou a célebre “Farinha Torrada”. Como curiosidade e, numa analogia ao famoso “biscoito” que acompanhou os nossos navegantes nos difíceis caminhos das descobertas, também aqui em Sesimbra se vulgarizou a partir do século XIX esta espécie de bolo denominado “Farinha Torrada” que pela sua textura (seca e dura), era uma forma de alimento de que os pescadores se socorriam durante a sua faina. De confeção caseira e artesanal, nos anos 70 assistimos ao início da sua comercialização, tornando-se um símbolo de Sesimbra. Hoje é uma iguaria certificada da região à venda nas padarias, pastelarias, espaços comerciais e lojas gourmet de todo o concelho, com assegurada exportação para todo o país e outros pontos do mundo.

Olhando para outros pontos positivos desta região, para além de ser possuidora de um ambiente que podemos considerar genericamente calmo em termos de ruido, poderemos salientar o aumento da sua população mais jovem e melhor qualificada, particularmente nas freguesias do Castelo e da Quinta do Conde, mantendo as tendências de crescimento demográfico e em qualificações, em contraste com o envelhecimento notado na freguesia de Santigo, a de menor densidade e sem vislumbre de fixação permanente de nova população, mais virada para o turismo sazonal que aliado às pescas favorece a economia local. De notar também a possibilidade do aproveitamento turístico apostado na qualidade e onde não podemos esquecer a enorme importância que o turismo religioso tem nesta região, concretamente o ligado ao Santuário do Cabo Espichel onde o culto de Nossa Senhora do Cabo remonta ao século XV, sendo considerado um centro de peregrinações hoje substituídas (sinais dos tempos) por concentrações dominicais de motards.

Apresenta, no entanto, alguns aspetos negativos revelados nas grandes dificuldades em competir ao nível do contexto metropolitano onde se insere. Com uma rede de transportes públicos insuficiente onde as acessibilidades rodoviárias poderão e deverão ser melhoradas face à deslocação diária que parte significativa da sua população faz maioritariamente em direção a Lisboa para trabalhar e estudar, a que poderemos aliar os reduzidos equipamentos de saúde existentes, fazem da zona de Sesimbra um território carente de um investimento imediato para cativar e melhorar as condições de vida dos seus habitantes e visitantes.

É desta forma que Portugal (e Sesimbra) se vai modernamente apresentando ao mundo: mais limpo, mais saudável, mais culto, mais urbano, mas menos fecundo.

JFV

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Director do jornal O Sesimbrense