Entre o perfume balsâmico de cafezinho acabadinho de fazer e o eflúvio de dezenas de margaridas, cravos, rosas, lírios e girassóis permanecemos à conversa com as proprietárias da Florista Antónia. A 1 de Novembro de 1977, no Dia de Finados, na rua Leão de Oliveira, abriu a Florista Antónia. O dia foi de pouco movimento, recorda Maria Emília da Conceição, até porque a “minha Antónia ainda tinha banca, no mercado de Sesimbra, e as pessoas ainda não se tinham habituado a vir cá”.
Iolanda Ávila
As manas não se aperceberam de que a data de 1 de Novembro, e o nome da rua em homenagem a António Pinto Leão de Oliveira, médico sesimbrense, são em si, memórias de colossais revoluções.
A primeira, uma ocorrência geológica que mudou permanentemente as mentalidades e a história de Portugal e da Europa, e o segundo, a alteração do paradigma política para os ideais republicanos, incorporado no ilustre sesimbrense que pelejou para um Portugal igualitário, com acesso à instrução e à saúde. Vagas memórias que hoje estão diluídas na nossa democracia, e que as irmãs, ainda em plena instalação da ditadura beneficiaram.
As manas não se aperceberam destas descomunais revoluções, porque geriam com dedicação total a sua própria revolução, a da sua subsistência.
Nos seus rostos, nas suas mãos, e nos seus corpos, adivinham-se os longos anos de trabalho e de preocupação com o amanhã. Nas suas falas advém sempre a erudição de sibilas, no seu rosto, o sorriso, que embora cansado, permanece. Apesar de tudo.
As pernas recusam se à ligeireza de dias passados, os ossos doem na lembrança contínua da passagem do tempo, a vista vai falhando, e pensam em terminar, até porque a própria clientela envelheceu e desaparece. Mas recebem com carinho cada visita, que começa a rarear, ainda mais nestes últimos anos de Covid. Pensam em fechar: “Estamos na fase final”.
Maria Emília da Conceição, nasceu em 1943, sua irmã, Antónia da Conceição Lima Costa em 1933. Nasceram em São Lourenço, em Azeitão, numa família de 11 filhos, do casal Guilhermina da Silva e Gregório da Costa.
Em 1933 Adolfo Hitler é nomeado Chanceler da Alemanha, dá-se a construção da Golden Gate Bridge, e em Portugal celebra-se o início do Governo do Estado Novo, com as publicações periódicas a solicitarem um Estado Forte e Total.
O pai “em novo, foi pescador! Depois deixou a pesca e tratava das terrinhas, para dar coisinhas para a casa e para se vender alguma coisa fora. A minha mãe? Era dona de casa e vendedeira de fruta que era uma maneira de arranjar pão para alimentar a filharada.”
A mãe, tinha um burrinho, para auxiliar no transporte da venda da fruta. Para adquirir as laranjas e tangerinas, no tempo delas, ia 3 vezes por semana da Maçã a Palmela, e de Palmela ao mercado de Sesimbra. “Quando não vendia tudo, o restante era colocado dentro de cestas, e vendia as suas laranjas pelas ruas estreitas de Sesimbra. Depois ia para casa, arranjar a ceia, e à noite dava uns pontinhos nas roupas dos filhos, com a luz do petróleo baixinha, para não gastar muito.”
As roupas eram lavadas na ribeira, e estendidas por moitas, ficavam com o cheiro de flores e verdura. Usava-se aroeira para varrer o forno, onde a mãe cozia pão de trigo ou de milho. As refeições eram quase sempre feitas com feijão demolhado, e um fiozinho leve de azeite. Outras vezes a mãe trocava frutas por peixe seco, ou fazia caldos de farinha. Por vezes havia a açordinha, e um bocadinho de toucinho.
Quando havia a possibilidade de se ter um porco, comia-se a banha temperada com pão. “Senão era pão e dentes e a maior parte das vezes nem pão havia, a gente tinha dentes e fome”.
Ambas foram para escola, por mando do seu avo materno, José Campante, que não sabendo ler e escrever, quis que toda a sua descendência fosse estudar. Todos os seus irmãos aprenderam a ler, menos o Paulino, que não se via fechado na escola.
Emília da Conceição ia a pé da Maçã para a Escola nova do Salazar, sua irmã Antónia foi viver com os avós, e ia dos Casais da Serra para a Aldeia da Piedade, que naquela altura era mato fechado.
Levavam os sapatos da cor da pele – riu-se muito: “nos invernos, eram umas botinhas da cor de lama, no verão, eram da cor do pó das estradas, picadas com os bicos e pedras”.
Emília teve a sorte de apanhar as merendas na Escola de Santana, onde abriram uma cantina escolar, cuja ementa era constituída sobretudo por sopas de hortaliça e pão. A mãe dava-lhe dinheiro para comprar um queijinho fresco aos vizinhos, a Tia Arminda e o primo Raul. Lanchava o pão que lhe era dado na escola e o queijo fresco. Também teve acesso à Caixa escolar que era uma ajuda do Estado para o material escolar. “Tive essas benesses todas, mas a minha Antónia não. Por vezes levava um pedaço de pão, outras vezes era nada. Antónia foi muito mais sacrificada do que eu.”
Os primeiros trabalhos foram os de apanhar ervas para os coelhos, e a partir dos 11 anos foram nas terras, e nas vendas no mercado de Sesimbra. Compravam hortaliças, frutas, queijos, manteigas, feijões e batatas que depois revendiam: “era o que havia que a gente deitava a mão para sobreviver”.
Antónia, já tinha um lugar no mercado a vender, quando a Dona Umbelina, amiga que vivia em Lisboa, que tinha sido modista, mas envelhecera, comprava flores no mercado da Ribeira, e aos fins de semana vendia na Praça de Sesimbra. Aconselhou Antónia e passou-lhe o negócio de flores, “pois era mais leve que as caixas da fruta, e disse-lhe para experimentar e cá estamos.”
Antónia começou a fazer o giro de Lisboa. Ia de carrinha até Azeitão, apanhava a camioneta para Lisboa, passava o barco, ia ao mercado da Ribeira. Se pudesse com tudo, ia de volta na viagem até Azeitão, senão contratava um dos homens que lá havia que lhe transportava a mercadoria até à carrinha em Azeitão.
-Vossemecê precisa é de vasinhos pequenos? Ah a gente não temos”, diz Dona Antónia a uma cliente que lhe entra na loja.
Antónia conta dos medos e pavores em viajar até Lisboa, pois apenas conheciam os Hospitais devido ao estado de saúde da mãe, que requeria cuidados constantes. Na sua primeira viagem, decidiram que ao aportar do barco, iriam seguir as mulheres que iam de sacos e canastras vazias, pois certamente iam ao Mercado da Ribeira às compras. E assim foi! Antónia foi com medos, mas chegou ao mar das flores, na Lisboa de canções e carros.
Os anos passaram, ficou no Mercado de Sesimbra, até que, após o 25 de Abril, optaram por procurar um novo espaço.
Encontrou-se o local, que era o Forno dos Garcias, que na altura estava inativo. As obras demoraram cerca de 2 anos, o forno foi retirado, e o espaço ampliado. A casa nova foi aos poucos atraindo os clientes, e Antónia deixou a banca no mercado. A melhor altura do negócio foi da altura do negócio do peixe, até aos anos 90. Assim que as pescas faliram, todos os outros negócios também foram arrastados para baixo.
“Graças a Deus para as nossas possibilidades nunca nos faltou trabalho. Enquanto tivemos a capacidade de fazer os trabalhos eles apareciam”. Faziam as festas grandes da vila, a festa do Senhor das Chagas, da Nossa Senhora do Cabo, da Igreja Matriz, Senhora da Atalaia e a Senhora del Carmo. “Fazíamos os andores, as igrejas, as festas, ramos para as noivas, decorações para as portas, e para as montras”.
Nunca tiraram um fim de semana, ou folgas. Sempre trabalharam das 7 da manhã às 7 da noite, e muitas noites que foi necessário passar em branco para ter tudo pronto. “É bonito trabalhar com flores, é uma entrega de alma e coração. É uma vida sem horas para terminar. O negócio das flores esta acima de tudo, e em primeiro lugar”.
Mas como nas recordações das suas vidas, Antónia e Emília não conseguem escolher uma flor porque da “mais singela à mais sofisticada, gosto de todas.”.
Criaram a sua família e fizeram vida com as suas flores. Viram os clientes casar, fizeram-lhes os arranjos para a festa de batismo, e a muitos fizeram a despedida com as coroas de flores.
As flores foram e são o princípio e o fim de tudo, presentes em todas as celebrações das etapas da vida, na chegada e na partida.
“Deus dá-nos poucochinhas forças, mas são bastantes para os trabalhos que a vida nos manda”.
Iolanda Ávila