Emiliano Palmeirim

Emiliano Parada Marques Palmeirim nasceu em Sesimbra, em 1928. Começou a pescar com 15 anos, uma profissão de toda uma vida. Trabalhou em várias artes de pesca e chegou a ir para a cidade de Luanda, onde trabalhou, durante 18 meses, como motorista, numa empresa de pesca. Mas foi na pesca das aiolas que fez a maior parte da sua vida de pescador. Outrora, as aiolas tinham um grande peso na pesca de Sesimbra, chegando a deslocar-se para pesqueiros longínquos, com o auxílio de barcas maiores, para captura do peixe-espada e outras espécies. Outras técnicas de pesca, como a zagaia, ou o corrico, foram também utilizadas por Emiliano Palmeirim.

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Qual foi a primeira pesca em que andou?
Ao polvo. Eu e outro senhor, chamado Humberto. Pesca ao polvo, dentro das aiolas, aqui perto. Naquela altura pescava-se em cima da pedra, ao polvo e então, não levava anzóis; era só a isca, o polvo agarrava-se, nós puxávamos. Depois daí é que fui para o aparelho.
Depois, comprei uma aiola. Fui ter com um rapaz – um rapaz que faleceu há pouco, chamado Antonio Pólvora. Comprámos uma aiola em segunda mão, e depois mandámos fazer outra. A aiola que comprámos em segunda mão era a Nova Lisboa, que era dum sujeito que tinha ai um barco, que era o Carlos da Rachada. Quando a minha aiola se fez, eu pus aquela em boca de venda e fiquei com a outra aiola, com o nome da cidade onde é que eu estive: Luanda.
Mais tarde, tinha dito lá ao meu camarada: Antonio, eu já tenho filhos homens – e tinha – e então, se tu quiseres ficar com a aiola, eu faço a venda, mas se tu não quiseres, tu fazes-me a venda a mim e a gente resolve a coisa a bem.
E assim foi. Tinha já três filhos homens, um com 65 que tem hoje, outro com 64, outro com 61, e entre esses dois morreu-me um, pequeno. E então, disse ele: Não, Emiliano, eu faço a venda e tu ficas com a aiola. – Então quanto é a aiola? A aiola tinha custado em nova dois contos e setecentos – olhe que há perto de 50 anos! – e então, pronto, está bem. – E o aparelho? A gente tinha aparelho para as xaputas. E o aparelho, as selhas, os cabazes… Disse ele assim: – Dois contos. Pronto, dois contos, são cinco, dois e meio para ti. Fiquei com a aiola, fui andar com o filho.

Essa pesca, durante esses anos, foi sempre feita com duas pessoas na aiola?
Sempre duas pessoas! Andámos ao peixe-espada, na barca do António da Olímpia, Amor ao Ofício. A barca, nessa altura, levava seis aiolas: era boa, belíssima barca, levava seis aiolas. Eram… não sei se o senhor conhece, era um sujeito chamado Cantaril, Francisco Cantaril, era o Sebastião Fifas, e era mais! Eram seis.

Para onde iam?
Para Bombaldes, uma média talvez aí vinte milhas.

E depois de chegarem lá?
Botes ao mar, cada um com anzóis, duas pessoas. Sabe qual era a nossa pesca? À zagaia. Estávamos a pescar alí em… vá lá… doze linhas, uma média de 180 ou 200 metros de profundidade. Quando o peixe-espada não ia lá, deixava-se bater no fundo e toca a pescar. Pronto.

E apanhavam muito peixe?
Se apanhava?!…

Sabe que no Museu da Fortaleza está um filme que mostra aiolas, a apanhar peixes-espadas enormes?
Também a gente apanhava! A zagaia tinha um par de anzóis, tinha uma espécie de argola, enfiava-se, oh! Os anzóis vinham a brilhar!

E iscavam?
Não iscava nada! Às vezes, ao tirar a tripa do peixe-espada, cortava-se um bocadinho para pôr nos anzóis, pronto, para fazer uma espécie de amostra. E a gente toca a puxar! Oh! As aiolas?! Chegavam a vir carregadas!

Depois o peixe-espada começou a desaparecer, não foi?
Começou, começou. Eu não sei bem a data em que acabou. Depois houve esta coisa, que não podia levar os botes dentro das barcas – havia umas poucas de barcas à zagaia, iam sete ou oito aiolas, ou quinze ou vinte – seis e quatro em cada barca, pronto!
Ainda andei numa barca à vela, eu não tinha vinte anos. Era uma barca que tinha feito um homem que era o Cristino José Custódio, um bom carpinteiro, fez uma barca, e a barca, naquela altura, era dele. Não me recordo se emprestou ou se tinha outro dono, sei que fomos na barca que era desse sujeito e com a nossa companha, a companha desse Damião.

Se não houvesse vento, como é que faziam?
Ao remo! A barca, com os remos, anda mais que o bote. O bote agarra mais. E a barca tem uma espécie de duas proas, corta mais a água. Se a companha for cinco, já se sabe, só arma quatro remos, é dois à frente e dois atrás; e o dono, ou o mestre, à popa.

E navega bem?
Navega. Então não navega?! O senhor não se lembra, aqui, quando era a regata, barcas à vela? Pois. Barcas à vela, barcas ao remo, botes ao remo… As barcas eram ao remo e à vela. Estava aí uma barca, que eu andei lá dentro da barca da armação, três anos, e andei outros três na Restauradora. A barca melhor que era para a vela, o nome da barca era a Ventoinha, era a barca do Roquete, do Zé Roquete.

Quando mandou fazer a sua aiola, quem foi o carpinteiro?
O senhor Ernesto, o filho. Olha, ali na Cruz! [na encosta do morro do Calvário, próximo da Cruz]

E fez algum pedido especial?
Não senhor, não fiz nada. Fui ter com o carpinteiro. – É pá, fazes a aiola? Era o filho dele. – Quanto é a aiola? – Dois mil e setecentos. – Então faz a aiola. Foi vinte e oito dias, ou trinta dias, pronto, a aiola feita.

Chegou a andar em aiolas à vela?
Não, que eu tinha receio.

Receio de quê?
De revirar. E revirei à vela! Já morreu quem me apanhou. Foi aqui perto. Foi um bocadinho da parte de lá da ponte, o nome que tem é Lapa da Palha. Foi aí que eu revirei à vela.
Mas estava muito vento?
Vinha-se das agulhas, e estava uma aragem de vento. A gente trazia 50 ou 60 agulhas, e um cherne. O cherne, já amanhado, para comer em casa do Zé Bolacha! Era. Isto é autêntico! E então, pronto, vinha amalhado, vinha uma aiola pela nossa proa, o Tio Arrijo – o Arrijo velho, que era o pai do Balhão – e o filho, ele tinha três filhos. Nós atrás dessa embarcação, vinha lá o meu camarada à vela, e então, pelos jeitos, veio uma rajadinha maior, as pedras, que eram de ancorar o aparelho das agulhas, correram para a borda, arrevirou. Foi assim mesmo. Vinham as pedras à popa. Com o vento, inclinou assim a aiola, olha, as pedras chegou mais, quando largou a vela, foi lentamente, lentamente, revirou.

Mas vieram outros barcos  ajudar?
Foi esse Balhão, essa aiola do Balhão, é que apanhou.

E conseguiram pô-la direita, ou veio a reboque?
Isso foi logo direito. O mastro, a vela, não deixa revirar a quilha.

Mas então, nunca mais quis andar à vela?
Depois, andei em botes, e então eles diziam assim, às vezes lá o feito de assobiar para vir vento, isto era a mania de alguns pescadores, toca a assobiar! Eu às vezes dizia assim: eh pá, estás a assobiar porquê?
– A ver se vem a aragem de vento.
– Vento? O Vento para o quê?
– Para a gente não remar!
– Não, não! Para mim antes quero não estar vento e vir ao remo.

Eles acreditavam mesmo que se assobiassem vinha vento?
Não!

Era brincadeira?
Acho que sim! Isso é uma tradição já antiga!

Entretanto, ali nos anos 70, o peixe começou a faltar.
Pois começou. Em 70, acabou as armações! Eu andei três anos no Roquete, e andei três, ali, era perto da Arrábida, na Restauradora, que era do Joaquim Marques Antunes.

E nessa altura ainda se apanhava muito peixe?
Onde é que eu andei lá, no primeiro ano, no Roquete, era uma miséria. Nada, nada, nada! Cada semana, o nosso ganho era sete escudos cada um. Sete escudos!

O pagamento fixo?
Pois.

Depois havia uma percentagem do peixe que se apanhava?
Mas não se apanhava! O que apanhava era pica. Pica, pica, pica! Para iscar as embarcações que iam lá buscar.

Usavam a pica para isca?
Usavam! Aquele mar só tinha era pica! Não tinha carapau, não tinha…
E depois daí, digo assim: se for para a armação, é para os campeões, a armação que matava mais peixe, a Varanda, era a campeona. A Varanda, e o Ilhéu.

O sr. Emiliano também chegou a comprar peixe para isca…
Posso-lhe dizer que comprei centenas – para não dizer milhares – comprei centenas de contos.

A quem comprava?
Eram às traineiras que vinham, às enviadas. Vinham com peixe e depois era vendido.

Comprava na praia, ou a bordo?
Era dentro do barco. [Para] o Zé Leste, ou o António das Gestrudes, ou o David, ou o Anacleto, também comprei. Davam lá aviso ao velho de terra, para eu comprar peixe. A iscadura, já eu sabia que era preciso cento e tal caixas. O peixe era vendido, quando chegasse ao meu preço, eu dava o xui. Xui! E eu depois dava o nome da embarcação de quem o peixe era.

Fazia essa compra de isca, mas também pescava?
Quando não havia, ou ia muito caro, fora cá do meu preço, mar! Eu ia às sete, ia às oito ou ia às nove, pronto! Vinha às duas da tarde, ou às três, e está o dia!

Pescou até que idade?
Setenta e oito. Deu-me um problema de saúde e então… Tinha ido ao mar, lembro-me tão bem como fosse hoje. Tinha ido ao mar, a quinze de Agosto. O meu lance foi: dois quilos de chocos, e uma vara. Conhece a vara?

Não sei o que é.
É um tipo dum robalo. Tinha um quilo quinhentas e cinquenta. E era dois quilos de chocos, vendi aqui, boca-a-boca, ao restaurante Pedra Alta! Vendi os chocos quatro contos, e três contos e cem, a vara. Sete contos e cem, foi o último lance! Foi o último! Daí em diante…

Qual é a sua opinião, ter havido tanto peixe, no seu tempo, e agora estar a desaparecer? Como é que se explica isso?
Eu explico, é: há falta de peixe, e então cortam: não pode apanhar sardas; não pode apanhar peixão, não pode apanhar várias qualidades de peixe, então porquê? Mas porquê?! Peixões, era peixões deste tamanho… De acordo que haja defeso, agora acho que cortou a coisa de pesca, agora era para trinta toneladas, agora é catorze, não sei, qualquer machucha dessa!…

Mas a verdade é que cada vez há menos peixe no mar…
Pois há. Pois há.

E porquê?
Porquê? Não sei se é da poluição, ou qualquer coisa assim…

E há também cada vez menos aiolas…
Tem tendência para acabar. Aiolas aí, eram 100 ou mais. Agora, se calhar, não há 20. Pois não.

Mas era um barco de que gostava?
Gostava da aiola e, pronto, o peixe que nós apanhávamos, eu e o meu camarada, a gente via dinheiro. A gente trabalhava com mais vontade, não é? Eu, trabalhar para mim e trabalhar para o senhor, é muito diferente! Não é assim? Trabalhava a 100 por cento para mim. E para o senhor não trabalhava a 100, trabalhava a 80!

Disse que a aiola é um barco que navega bem. E estes barcos de fibra que agora usam? Acha que aquilo navega bem?
Não! Aquilo para remar, oh! Alguma vez! As nossas aiolas andavam bem! Quatro remos, oh! Se andava!

Até faziam regatas!
Era todos os anos!

Chegou a participar?
Cheguei. Um ano. Um ano ou dois. Fiquei em quarto. Nessa altura não tinha aiola. Tenho um filho que vai todos os anos. Já não foi menos de 10 ou 12 vezes. O meu Júlio, tenho lá taças, não quero mentir, mas não tem menos de quinze. E este ano também já foi.

O que leva uma aiola a ganhar uma regata, é a maneira como a aiola é feita, ou acha que é o remador? Ou é as duas coisas?
É as duas coisas. A aiola com bons cortados tem diferença. Há aiolas que, nós a remar, agarra. E há outras que ajuda.

E essa diferença é da construção?
É do cortado, o cortado da embarcação.

E porquê? Havia uns carpinteiros melhores do que outros?
Pois. Pois era, sim senhor.

Lembra-se de quais eram os melhores a fazer aiolas?
Pois. O Cristino José Custódio. O Cristino José Custódio era um artista. O Môco. O Ernesto. E outros mais…

E esses que faziam melhores aiolas, levavam mais caro?
É mesmo assim: o senhor a fazer aiolas, eu a fazer aiolas, cada um levava o seu preço. Havia esta coisa de fazer aiolas e fugir ao prego. Compreende?

Não punham pregos?
Punham prego de vidro…

Para poupar na construção?
Não sei se o prego era muito dinheiro… Prejudicava. É pena acabar as aiolas.

E uma aiola dura quantos anos? Ou depende da manutenção?
Uma aiolazinha para a gente andar aqui da vida do ferrado – choco – para cima de vinte anos. Para cima! Oh! Pois!

Também chegou a pescar espadartes, ou peixes agulha, como eram chamados em Sesimbra?
Eu andei anos nessa vida. Como a barca dos ratinhos, não houve nenhum. Tanto iam ao arpão, à pesca, eram os Ratos.

Andou nessa pesca desportiva?
Andei pois. Na barca do Damião. Ia-se ao aparelho e depois tinha-se alturas, estava-se a puxar os aparelhos, os peixes – o peixe-agulha ou outros peixes – ia roubar o peixe que estava fixe. E depois: É pá, arma aí uma pesca – nós tinha-se um anzol, que era o anzol número um, enferrava uma chaputa, arriava uns cinquenta metros, oh, se pegasse pegava, se não pegassem não pegavam, mas de vez em quando, era, apanhava-se!

Mas os pescadores desportivos que vinham para aí…
Eu andei com eles também! Se quiser nomes, eu dou nomes. O primeiro pescador com que eu andei foi com o Jorge Brun do Canto; andei com o Rocha da Silva. Andei com um homem que era o eng. Morais. Andei com o dr. Arsénio, um homem alto…

O que era médico?
Médico. Andei, andei. Ainda andei com outro, andei com um, se eu não estou em erro, eu não ajudei a apanhar nada: o homem é que, estava dentro da aiola, e eu estava dentro da barca. Foi o primeiro espadarte que o primeiro banhista apanhou cá em Sesimbra: foi içado ali na Fortaleza. Esse peixe. Não me recorda…

O primeiro espadarte que foi apanhado em Sesimbra?
O primeiro espadarte desse senhor.

Ah, o primeiro dele?
O primeiro desses, que vinham cá.

E a captura não demorava  muito tempo?
Não. Porque a gente apanha mais rápido.

E o peixe não arrastava a aiola?
O atum é pior. O atum tem mais força. Morre mais depressa, mas tem mais força.

Chegou também a pescar ao atum?
Cheguei. Cheguei a pegar no Canto d’Água, o atum, e fui até às Azoias, quase até ao Cabo, a reboque. Olha, era eu Emiliano, e o dono da barca também era Emiliano. Emiliano, já morreu: o Emiliano da Branca. Era dessa barquinha. Ele estava a pescar e eu também estava a pescar. Mas ferrou, aquele peixe [ri-se] Oh peixe mais malvado!

E isso não era perigoso: a aiola ir arrastada?
É que o peixe, quando pegou, veio para o cima d’água, esse atum veio para o de cima d’água, e pronto, levava para oeste, levava, toca a andar para oeste. E eu toca a aguentar o peixe. Não arriava nada. Ia a reboque. Para onde é que ele me leva, este peixe? Andei mais de hora e meia a reboque desse peixe.

João Augusto Aldeia

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Director do jornal O Sesimbrense