Zé Preto, Gilberto Pinhal, Manuel José Zé Preto – Três poetas sesimbrenses

Teve lugar no passado dia 23 de Março de 2019 a evocação de três poetas sesimbrenses – Zé Preto, Gilberto Pinhal e Manuel José Palmeirim – numa sessão que decorreu no auditório Conde Ferreira, em Sesimbra. Iniciativa da Liga dos Amigos de Sesimbra, que para este fim convidou António Reis Marques, Pedro Martins e Risoleta Pedro para falarem de cada um daqueles poetas. A sessão contou igualmente com a apresentação de um vídeo artístico realizado por Fernando Rodrigues Andrade, sobrinho de Zé Preto, e com a declamação de poesias dos homenageados, por Maria Chagas e Maria José Ruivo.
Laura Correia, presidente da Junta de Freguesia de Santiago, disse considerar esta iniciativa “de particular importância por dar a conhecer e homenagear os poetas da nossa vila, sendo a poesia popular uma das formas importantes de transmitir o conhecimento através de várias gerações”.

Zé Preto: “O Poeta de Sesimbra”

 Foi António Reis Marques quem abriu esta sessão, com uma intervenção sobre Zé Preto. Começou por referir que em toda a sua vida tinha beneficiado “de relações de proximidade com homens de grande valor, que tão generosamente contribuíram para a sua formação”. E um dos grandes homens “que tive a ventura de reconhecer, e de receber ensinamentos” foi precisamente, Zé Preto: “Mentor da minha actividade jornalística, oráculo dos meus tempos de iniciação da primitiva tertúlia do Café Central”.
O poeta acabaria por falecer precocemente, com apenas 28 anos de idade, “devido a uma congénita insuficiência cardíaca, doença que o acompanhou ao longo dos anos e tanto condicionou a sua vida”.
António Reis Marques testemunhou ter sido Zé Preto “um homem inteligente, sensível e dedicado”, que “desde cedo revelou particulares dotes para a criação literária e artística e, ainda que tenha ficado mais conhecido como poeta, também se afirmou como hábil desenhador e decorador”.
Tendo nascido em Setúbal, era descendente de uma das mais antigas famílias sesimbrenses, os “Pretos”, por isso usava o pseudónimo de Zé Preto. Veio para Sesimbra ainda menino, para ficar aos cuidados da sua avó materna, Palmira Preto Chagas. Recebeu desta avó uma sólida cultura humanística: “talvez por isso ele conseguisse como que fintar a inevitabilidade da doença, mostrando sempre um sorriso bondoso, alegria no convívio com os amigos e dignidade no desempenho das suas humildes funções. Era um ser excepcional porém só todos se aperceberam verdadeiramente da sua verdadeira dimensão, depois do seu desaparecimento: é quando as grandes árvores caem, que nós vemos o vazio que elas deixaram”.“Faz cá falta o Zé Preto”: era o que se ouvia desde então, nas quadras festivas, como o Carnaval, em que ele era disputado pelas colectividades recreativas para decorar as respectivas salas onde decorriam os divertidos bailes de máscaras, “uma tradição do entrudo sesimbrense genuíno, bem nosso e não imitado por influências exógenas, como passou a acontecer”.
Zé Preto, “rapaz humilde, franzino, doente, de olhos negros cismáticos, sublimou o sofrimento da sua vida com a sua alma de poeta – e foi aquele que, com o seu estro, melhor soube cantar Sesimbra”, da qual afirmou:
“Esta é a ditosa terra minha amada a quem a vida minha consagrada”.
E por isso António Reis Marques considera que continua válida a atribuição que os seus conterrâneos fizeram ao malogrado Zé Preto, considerando-o como “O Poeta de Sesimbra”.

Alalaia: “mensagem iniciática”

 Pedro Martins dedicou a sua comunicação a Gilberto Pinhal e, mais precisamente ao seu poema “Alalaia”. Começando por recordar que “a arte é longa e a vida breve”, que “o caso doloroso do sesimbrense Gilberto Pinhal nos vem agora sublinhar: partiu quando o século ia a meio, com 23 anos”. Referiu que o poeta fora sobretudo “um «misto de poeta e marinheiro, e por isso alma bem portuguesa», como dele afirma, judicioso, quem o evoca na edição de O Sesimbrense de 12 de Novembro de 1950, seis dias após a sua morte. Não vem assinado, o obituário, mas não custa supor, e será mesmo de admitir, que tenha sido Rafael a escrevê-lo.
Referindo ser Alalaia a versão poética de uma lenda sesimbrense, “tal como esta, naqueles anos, lhe terá chegado pela tradição oral. Disso mesmo de algum modo nos dá conta ao narrar que «o velho pescador desfia ao neto / o rosário já de seu avô», Pedro Martins questiona: “onde fica essa ilha, a Alalaia? Os mareantes que a procuram, esclarece Gilberto Pinhal, vogam «através dos espaços, sem rumo, sem norte, sem fim», buscam «essa terra que para lá do Sol fica», coordenada será repetida ao longo do poema, várias vezes.
Mas o poeta também nos diz que «Alalaia jaz / no seio do mar, / Envolta em mistério oculto, / negada aos olhos do Mundo». Chamando a atenção para o que parece ser uma contradição, afinal: “Não passa de mera aparência, se ali tomarmos o Sol e o mar como símbolos. O símbolo, ensina Álvaro Ribeiro, é a metade sensível de uma realidade insensível, isto é, de uma realidade que não pode ser alcançada pelos sentidos. Temos assim duas imagens que nos emetem para uma realidade de outra ordem.
Gilberto Pinhal diz depois, referindo-se à Alalaia, “cuja visão surge sempre ao raiar da aurora, que a terra era céu de beleza, de clareza. Não será, por isso, errado ver na Alalaia uma terra celeste, o que aliás é coerente com a minha afirmação de que ela é já um outro mundo. Quero com isto dizer que a Alalaia não é o mundo físico ou natural, em que estamos e que se oferece às nossas percepções sensoriais, mas um mundo situado já fora do espaço e do tempo. Assim, a Alalaia, tal como o poeta a vai descrevendo, é «a terra bela, / de mar tranquilo, de homens puros / de vida eterna»; é também a terra «do sol eterno»; e é ainda «o sonho eterno que os barcos correm, / de mar em mar, / em busca do ignoto».
Para Pedro Martins, outra nota da maior importância, e aliás decisiva, é o facto de no poema os seres e as coisas parecerem difundir uma luz que lhes não é exterior, que lhes não vem de fora, mas que tem neles a sua origem: “os homens aparecem-nos envoltos em halos de esplendor infindo; e as areias, apesar de morenas, refulgem em dourado. Dir-se-ia, pois, que comungam dessa luz que, nas palavras do poeta, irradia do altar à vela e do mar ao moinho.”
Para o orador, a chave que nos abre as portas de Alalaia, será encontrada em António Telmo e na leitura hermenêutica que ele nos propõe de Os Lusíadas, no seu Desembarque dos Maniqueus  na Ilha de Camões e em vários outros estudos sobre o poeta.
Isto porque, na Ilha do Amor, como António Telmo realça, a luz que ilumina as coisas «não vem do exterior, de um foco luminoso – sol, lua ou lâmpada –, foco exterior ao objecto iluminado. Vem do objecto que é iluminado.
Assinalando os pontos de convergência – e não são poucos – entre Camões, tal como Telmo o leu, e a obra de Gilberto Pinhal, Pedro Martins crê que nos vamos aproximando do sentido mais elevado do poema Alalaia, de forma a mostrar que a sua mensagem é de sentido iniciático e que, por conseguinte, estaremos diante de uma autêntica obra de arte, não apenas pela beleza estilística dos seus versos, que todos saberão decerto reconhecer e admirar, mas também por dar expressão a um pensamento ancestral e fecundo que responde aos anseios de uma humanidade decaída e em busca da redenção.
“Ficamos desconcertados perante uma realidade que ora nos foge ora nos ilude. Mas a ilusão é só nossa. E somos nós quem falta à chamada, que é afinal a do moço chamador, se à imortal balada de Zé Preto, já aqui evocado pela voz soberana de Mestre António Reis Marques, símbolo vivo da geração que hoje evocamos, se à imortal balada, dizia eu, restituirmos a sua altíssima significação primacial. É que essa chamada é para o mar e é para a morte. O mar como via ou caminho da iniciação, a morte como símbolo da mudança de estado que conduz a um segundo nascimento. E por isso «o moço conhece, / da noite, os segredos. / Não teme fantasmas / E fala com os medos». O moço é um ocultista improvável, saído das páginas de As Sombras de Pascoaes, esse sublime mago do Marão em cuja leitura Telmo,
vindo da Arruda, terra das bruxas, e entrado na roda de que se tornou o eixo, como belamente escreveu Rafael, iniciou os seus conviventes”.
Apesar de “ao que se sabe”, não ter sido Gilberto Pinhal um iniciado, Pedro Martins sugere que Alalaia parece vir dar alguma razão a René Guénon quando explica a presença no folclore de aspectos da tradição esotérica, “pela necessidade que os iniciados, perante circunstâncias as mais adversas, sentiam de a perpetuar nas criações populares, assim tornadas suas depositárias inconscientes. O que de mais espantoso se verifica na lenda da Alalaia, tal como Gilberto Pinhal a fixou no seu poema, são a extensão e a profundidade com que o ensinamento tradicional que lhe é inerente pôde chegar até ele e, por ele, até nós.“

Manuel José Palmeirim: “as duas faces dum poeta”

 Coube a Risoleta Pedro falar sobre o poeta Manuel José Palmeirim, focando particularmente os dois livros de poesia que publicou: Espumas Vivas, de Março de 1950 (numa edição de autor), e “7 poemas de Sesimbra”, de 1963 (edição do jornal O Sesimbrense). A oradora começou por lembrar a extensa e variada colaboração de Manuel José Palmeirim no jornal O Sesimbrense, nomeadamente contos e outros textos literários, poesia, assuntos locais, polémica, sugerindo que toda essa obra é merecedora de estudo.
Afirmou depois que era visível neste poeta, por um lado, a veia da tradição, “que emana da sua origem”, e a veia mais moderna “que lhe vem do contacto com a poesia contemporânea, muito possivelmente potenciado pelo seu trabalho em editoras”. Paradoxalmente, nos dois livros referidos, “a tradição vem depois da modernidade”. Ou seja: o livro que foi publicado primeiro, Espumas Vivas, é mais inovador, de verso mais livre, enquanto que no segundo “encontramos uma toada antiga, dos trovadores, um ritmo que vem do mar”, razão pela qual Risoleta Pedro designou a sua comunicação como “As duas faces dum poeta”.
Apesar deste aparente “retrocesso”, Risoleta observa que , da primeira para a segunda obra, houve um amadurecimento do poeta: no segundo livro, de formalismo mais tradicional, “está a poesia com tudo a que tem direito: musicalidade, confidência, tradição, observação do real e transformação pela metáfora”. Neste livro, o poeta, cresce dentro do poema de modo a criar “finais fortes, nobres, por vezes épicos”.
“Um enorme crescimento, é o que encontro neste segundo livro, através deste caminho iniciático para se conhecer a verdadeira Vida, através do símbolo, do ritmo, e da poesia”.

João Augusto Aldeia

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Director do jornal O Sesimbrense