José Marcelino: pela estrada fora

José Marcelino que idade tem?
Tenho 76 anos

Como é que surgiu a paixão pelas rodas?
Fui assentar praça em Elvas onde fiz a recruta e depois fui para o CICA 3 no Porto onde tirei a especialidade de condutor. Mais tarde transferido para Santarém onde estive três meses e fui mobilizado para Moçambique, embarquei a 15 de abril de 1966. Demorámos a 11 dias a chegar a Luanda. Ficámos alojados três dias em Luanda e depois foram mais 10 dias a chegar a Lourenço Marques atual Maputo, três dias em Lourenço Marques, fomos no paquete Vera Cruz e por fim desembarcámos na Beira.

Que veículos é que conduziu na guerra?
Unimogs, Berliet´s, jeeps e também um trator.

Esteve em que zonas de conflito?
Moembe e Tenente Valadim, aí estava o comando da companhia CCS. Tínhamos destacamentos em Chico Nuno e Moatize não me recordo os outros nomes.
Permanecemos um ano em Moembe, depois viemos para Vila Coutinho no distrito de Tete, aí estivemos o resto do tempo regressámos em junho de 1968, estive lá dois anos. Parti em Abril e regressei em junho.

Qual era o batalhão e a companhia a que esteve adstrito?
Era o Batalhão nº 1089 e a companhia nº 1553.

Quantas quais baixas tiveram?
Tivemos quatro baixas.

Com quantos anos foi para a guerra?
Fui com vinte e um anos.

Que memórias guarda?
As memórias que guardo não são nenhumas boas, ao fim de estar lá há um mês, a companhia que fomos render foi atacada com uma bazuca e morreram 8 camaradas, foram enterrados no capim como cães sem qualquer urna sem nada, por isso é que a malta deve saber o que aquilo era lá, Nós lá éramos pior que os cães, morria-se …. O senhor David andou com um camarada de armas durante dois dias às costas, acabou por ser enterrado à beira do rio e ninguém o foi buscar. Depois viemos para sul estávamos melhor ficamos aquartelados na Vila Coutinho já não estávamos mal, tínhamos um restaurante onde podíamos comer, fomos para uma caserna construída de raiz, fomos estreá-la, num quartel.
Quanto ao resto nada de bom, para mim não queria voltar atrás, só pela idade.

Gostava de lá voltar?
Gostava, se me saísse o Euromilhões, gostava de visitar onde estive, gostava de ir ver os locais por onde combati. Conheço um individuo com a patente de alferes e que esteve lá anos depois da guerra, Gostava de ver o que lá está, acredito o que deve lá estar é o mato mais nada.
Vila Cabral era onde íamos abastecer, comer um franguinho assado, tinha dois restaurantes e lá se matava as saudades.
Os combates ocorriam quando íamos em coluna, ouvíamos tiros, parávamos e “a malta dos atiradores” faziam o reconhecimento e varriam com rajadas de metralhadoras em redor. Às povoações íamos buscar os turras. Era uma guerra de guerrilha, atacavam e punham-se em fuga e viravam as armas para trás e não se passava nada.

Acha que perdeu a sua juventude no conflito?
Sim, a minha e a dos que lá iam. Foi destacado um capitão dos comandos para a área onde estávamos e logo na primeira operação conjunta tivemos duas baixas.

O esforço que os militares tiveram na guerra foi reconhecido?
Nunca foi e continua a não ser reconhecido.

Quando regressou a Portugal como o encontrou o país?
Encontrei-o igual, o que encontrei de novo foi a ponte 25 de abril, foi inaugurada em 6 de agosto de 1966 quando estava lá e quando cheguei estava pronta. Carreguei para lá muita pedra, era ajudante de camião e descarregava o camião à pá. A pedra era das pedreiras de Sesimbra, Havia a pedreira do Zé Galo, do Penim Marques, do Teodoro Gomes Alho, do Ludovice (Ribeiro do Cavalo), António Veiga e havia britadeiras.

Lembra-se da viagem de regresso e do acolhimento?
O regresso foi muito bom, desde que abalamos de lá, viemos no Niassa, era um cargueiro transformado, não tinha restaurante, não tinha nada, íamos com a marmita buscar a comida, quando estava vento, quando a colher quando chegava à boca já não tinha nada.
A maior alegria quando o barco atracou Rocha de Conde Óbidos foi ver a minha mulher com a minha filha, quando fui para a guerra tinha 6 meses e quando voltei tinha quase três anos.
Tenho fotografias da chegada à rocha de Conde de Óbidos a Lisboa, foram duas camionetas com pessoas de Alfarim a receberem-me. Segui para Abrantes onde fiz o espólio.
Todos os anos há o almoço do batalhão, infelizmente muitos já partiram, vão os familiares; as viúvas e os filhos.
Da minha companhia estavam uns dez, o Nabais, o Rui, o Zé Alentejano, Havia um camarada de armas das transmissões um dia pregou-me um susto, ele era sonâmbulo “Cancela Cifra” levantava-se e pegava na arma… nos almoços recordamos as histórias ainda te lembras, lembro-me bem quando recordamos os tempos de guerra nos almoços.

Quanto tempo levou a fazer o luto da guerra?
Não sei, mas levei muitos meses a sonhar com aquilo, deitava-me e parecia que estávamos lá, depois foi indo e ainda houve muitos que não conseguiram ultrapassar aquilo. Para mim ultrapassei, ficou para trás o que lá passei e não me esqueço. Não tínhamos lá a família, éramos como uma família, eu era o cabo condutor, havia o cabo mecânico, os desempanadores, o tipo da manutenção da caserna, quando a malta não tinha dinheiro recorria ao crédito, aponta aí barbeiro, vai à cantina beber uma cerveja, era barbeiro nas horas vagas.
Uma vez fui na Alemanha fiquei lá um fim de semana, e estava lá um português, fomos dar uma volta em Hamburgo a um bar, estava escuro e ouvi um individuo a falar e eu disse está aqui um individuo que esteve comigo no ultramar!

– Ao fim de 10 anos como é você sabe?
– É o cabo Chico. É aquele tipo que está ao pé da mulher.
– Ó seu malandro o que está aqui a fazer?
– Ele olhou assim para mim (é da Covilhã), você para falar assim para mim é porque me conhece, mas eu não o conheço de lado nenhum!
– Aí não me conheces? Quando não tinhas dinheiro para me pagares o corte de cabelo, dizias ó barbeiro vai lá à cantina.
– Olha é o barbeiro!

Cheguei ao camião às 8 da manhã. Avisou a mulher que tinha encontrado um camarada de armas e que ia chegar tarde a casa. No dia seguinte fui almoçar umas sardinhas a casa dele.

Quando regressou à vida civil que profissão teve?
Fui empregado na Companhia Portuguesa de Seguros em Lisboa como contínuo ia todos dias para Cacilhas durante uns meses, ia de motorizada de Alfarim para Cacilhas.
Quando regressei a Portugal fui tirar a carta de condução. Fui “chauffeur” de um cunhado numa pedreira nas Pedreiras, depois passado pouco tempo comprei um camião, mas avariou-se, comprei outro e trabalhei por minha conta até 1974, dá-se o 25 de abril, vendi o camião, fui trabalhar para a Transfec uma empresa que já não existe era uma empresa de transportes internacionais que fazia o transporte de mercadorias pela europa, trabalhei lá até 1986. Posteriormente comprei mais um camião para fazer o internacional e fiz mais 4 anos, foram 30 anos de transporte internacional seguidos. Reformei-me aos 62 anos e andei mais uns três ou quatro anos.

Quantos milhões de quilómetros ao longo de 30 anos de profissão?
Ia e vinha fazia duas viagens por mês, cada uma 5000 quilómetros*2=10000 km*12 M*30 A 3600000 quilómetros. São uns quilometrozitos foi um tempo bem passado e outro mal passado porque de inverno, quando comecei a andar por aí os camiões não eram como são hoje naquela altura só havia cento e poucos quilómetros de autoestrada até chegar a Paris, era tudo em estradas nacionais. De Inverno a dormir num camião sem quaisquer condições era um problema, passávamos por povoações e as cidades. Um dia passei um fim de semana com a minha mulher em Milão, estava um frio tínhamos um termo (Terramicini) comprado em França que era a gasolina e servia de aquecedor, não havia mais nada fui arrancar a chapa dos 60 km para queimar a chapa no fogão servia para fazer calor dentro da cabine e lá passamos o fim de semana.
Agora estou nos 76 anos e está feita a vida.

Lembra-se o seu número mecanográfico?
O meu número era o 33323 e tinha um talher de madeira com o meu número. Um dia foi almoçar a casa de um amigo em Moscavide e acabou por ficar lá até hoje. A maior parte dos colegas que andaram comigo já faleceram, restam poucos.
Dormi muitas noites sozinho, foi uma vida solitária.
Quantos países conheceu?
Conheci 18 países: Espanha, França, Bélgica, Holanda, Itália, Áustria, Luxemburgo, Alemanha, Dinamarca, Hungria, Suécia, Suíça, RDA, Jugoslávia, Inglaterra, Irlanda, Moçambique e Angola.

Como é fazia para comunicar com essas pessoas desses países?
Bem ou mal nós tínhamos de comunicar, a Suíça e a Áustria, era complicado com as fronteiras eram 30 quilómetros de fila para entrar nos países, tínhamos que entrar com 30 litros de gasóleo era complicado iam ver e se levávamos muito gasóleo eramos multados. Se apanhávamos gelo levávamos 5 a 6 horas para fazer 30 quilómetros.

Chegou a visitar o monumento aos combatentes do ultramar em Belém?
Sim, já lá fui.

Que tipo de mercadorias transportava?
O termo que se usava era o “groupage” transportava-se tudo nos camiões, carregava-se tudo, naquela altura não era preciso o ADR licença de produtos perigosos no caso das tintas, hoje os camiões têm que ter os cabos isolados, existe uma maior segurança e controlo.
Daqui para lá carregávamos no Porto e na Póvoa de Varzim, cordas usadas na tapeçaria para Itália, pedra mármore de Vila Viçosa, industrias conserveiras no Algarve e em Setúbal, descarregávamos no cais de embarque em Lisboa: sapatos, têxteis, bicicletas, Vidal pinheiro, louça para a Suíça e para França, Tubos em Gondomar, papel e pasta de papel para Espanha e para Itália eram roupas.
Os condutores ingleses são os mais respeitadores, quando se deparavam com camiões de matricula estrangeira, faziam sinais de luzes e cediam a passagem, já os condutores italianos são muito complicados na condução, qualquer brecha enfiavam-se de qualquer maneira.
Na Alemanha conduzia-se bem também, naquela altura as pontes eram muito baixas e de vez em quando os oleados ficavam agarrados às pontes, mais tarde subiram a altura das pontes, naquele tempo não havia GPS, nem telemóveis era complicada a profissão.
Nunca tinha saído daqui não sabia onde era Vilar Formoso, tinha um mapa estendido no “capot” do camião, a primeira viagem que fiz foi à Holanda, mas não tinha camião para acompanhar os outros colegas a meu era uma Berliet; caminhão velho, certo dia estava encostado a um dos canais, quando fui pôr a trabalhar não trabalhava, tive que improvisar com um desperdício e gasóleo por baixo a fazer lume e nada, apareceu um homem com um cão, o homem foi buscar uma carrinha com um colega e com umas baterias, ligou os cabos e a Berliet fez uma fumarada tremenda, ficou sempre a trabalhar até cá, abastecia com ela a trabalhar, se fosse hoje não era possível.
Após ter regressado a Portugal, arranquei para a Itália, cheguei a chorar devido às exigências do oficio, a empresa para a qual trabalhava tinha 24 camiões, uma outra empresa de Setúbal que tinha 6 ou 7 camiões e a empresa do Porto tinha 7 camiões, quando nos juntávamos eramos uma família. Passávamos 4 a 8 dias à espera de carga, dávamos o número telefone e era assim que vivíamos. Ficávamos perto de um café o facilitava muito, estávamos sempre contactáveis.

O que faziam quando tinham tempo livre?
Conhecia melhor Milão do que Lisboa, Londres também, naquela altura corria tudo, desengatava o trator e conhecia aquilo tudo. Jogávamos às cartas, tínhamos que lavar a roupa, enxugar a roupa dentro do camião, tomar banho dentro do camião havia certos sítios que não tínhamos onde fazer as necessidades não havia casa de banho. Era muito duro! As condições de trabalho eram muito duras.
Hoje em dia há locais próprios, as zonas industriais têm restaurantes e zonas de serviço, parques de estacionamento para 200 a 300 camiões, podemos tomar banho e descansar. Podemos ver televisão. Naquela altura éramos meia dúzia e tinham consideração por nós, havia bombas de gasolina com cozinha, tinham casas de banho tudo em condições, mas começou a haver muita barafunda e alguns sujavam e não limpavam o que originou o encerramento desses espaços.
Em Hendaia na parte francesa havia um tipo tinha uma estação de serviço com oficina Berliet hoje em dia é Renault, tinha um autocarro com mesas e bancos e um fogão e passávamos lá o fim de semana, onde ficávamos. Só a partir da meia-noite é que podíamos arrancar.
Havia dias que não se almoçava e outros não se jantava.

Tem saudades de voltar a fazer essa vida?
Não, fiquei farto de condução, mas gostava de acompanhar um colega, já não posso conduzir esses camiões, gostava de ir por passeio para ver o que há de novo nas estradas europeias e nos países.
Os camionistas são como uns cães, toda a gente tem o direito a regressar a casa é o caso dos emigrantes, mas temos que ficar parados e cumprir os horários, aquela profissão não tem direito a nada. Não tem privilegio nenhum. Tem que fazer do caminhão casa, sem os filhos, sem a mulher. Escolhe-se uma estação de serviço para estacionar durante 48 horas, só depois é que pode arrancar. Não tem valor nenhum.

Havia colaboração entre os colegas da estrada?
Ao princípio sim, quando alguém ficava parado, os colegas ajudavam-se, conhecíamos uns aos outros e havia camaradagem entre todos, depois perdeu-se esse espirito de camaradagem. Éramos poucos agora somos milhares, não havia muito movimento, os transportes eram por via marítima, agora é porta a porta. Cheguei a passar duas semanas em Barcelona à espera de carga, agora não. Não tínhamos Natais, nem passagens de ano, quando havia trabalho e tínhamos de ir, naquela altura ganhava-se mais dinheiro do que hoje.
Levávamos a mercadoria para o destino e depois ficávamos à espera dois dias para fazer um novo frete. Não havia o movimento que há agora. Agora não, carrega-se e entrega-se, volta-se a carregar e entrega-se.
Ganhava-se mais dinheiro que hoje, ia daqui para Barcelona, naquela altura fazia 140 contos cerca €700,00 na moeda atual, agora era menos de €500,00 e o gasóleo era menos de metade do preço de hoje. Fazia uma viagem por semana a Barcelona agora faz-se duas, soma-se o desgaste do camião e combustível para faturarem o que eu faturava numa viagem. Hoje partem de Portugal, descarregam em Barcelona, carregam e descarregam em França e na Itália, carregam e entregam em França, uma roda viva.

Quanto gastava um camião daqui a França?
Daqui a Paris são 2000 quilómetros, 400 quilómetros a Vilar Formoso 600 quilómetros de Vilar Formoso a Hendaia e de Hendaia a Paris 1100 quilómetros. Faziam um consumo de 40 litros aos 100 km são 5000 litros de combustível.
Chegou a ter algum acidente no transporte internacional?
Sim, tive um acidente em Espanha, parti duas costelas, passei a noite junto ao camião e apanhei uma pneumonia! Isto tudo devido a uma constipação. Ao pé de Cáceres, levava uma carga de adubo, caiu a caixa comprimidos junto dos pés, fui apanhar a caixa a o camião foi à berma, tinha valeta funda, havia uma barreira o camião atravessou-se e voltou-se, passei lá a noite à espera do meu sócio, aconteceu quando tinha 62 anos.

João Silva

 

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Director do jornal O Sesimbrense