Policarpo Botas: “Gostava que dessem continuidade à empresa”

Policarpo Costa de Almeida Botas nasceu na Almoinha, freguesia do Castelo, em 1954. O pai tinha a profissão serrador; a mãe trabalhava no campo: no arroz, no trigo, a mondar e a ceifar.
Na infância, ainda na escola, com uns 10 anos, já vinha a Sesimbra, ajudar às barcas do aparelho “A gente levava umas selhas de aparelho e depois eles davam um peixe, uma xaputa ou um peixe-espada, a cada moço, os rapazes é que faziam aquele serviço”.
Vinha a pé desde a Almoinha: “Não havia carreira nem havia dinheiro para a carreira! Vinha pela encosta do castelo abaixo. Eu andava na escola de manhã, depois à tarde vinha, aí às duas, três horas. E quando andava à tarde na escola, às vezes à tardinha saía da escola, quando era Verão, e vinha”.
Depois começou a trabalhar como aprendiz de carpinteiro e, a seguir à revolução de Abril de 1975, foi um dos fundadores da Cooperativa de construção naval, que hoje é a empresa Estanaval. Entretanto os grandes mestres carpinteiros de Sesimbra foram encerrando os seus estabelecimentos, mais por falta de encomendas do que por outro motivo – deixaram de se construir barcos de madeira – e esta arte corre agora o risco de desaparecer.

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Qual foi a sua primeira profissão, recebendo um ordenado?
Com um ordenado foi carpinteiro naval… aprendiz.

Como é que foi a escolha dessa profissão? Escolheu ou calhou?
Calhou, vim mais o meu pai – o meu pai, como era serrador, vinha serrar madeira para barcos, e depois eu vinha com ele, e então ele pediu aos mestres do estaleiro se eles tinham falta aí de um rapaz e depois fiquei lá, pronto.

Os mestres iam lá escolher as madeiras, ou ele próprio escolhia?
As pessoas já sabiam o que eles precisavam, “olha, eu quero uma madeira para isto assim assim assim…” Antigamente havia pessoas que sabiam o que eles queriam, era só eles dizer. E às vezes também levavam o molde para irem escolher ao pinhal, “Eh pá este pinheiro é que é bom, isto assim é que é”. Havia peças, assim como as claras das barcas, as rodas e não sei quê, eles levavam os moldes… mas muitos já sabiam o que eles precisavam, que era aquilo.

Então o seu pai falou com um estaleiro, um mestre de carpintaria – lembra-se de quem era esse mestre?
Era o senhor Picão, conhecido pelo Picão, e era o Pinhal.

O Pinhal é o que é armador?
Este Pinhal, armador! O meu mestre foi ele e mais o Picão.

Qual era a localização do estaleiro?
Era lá ao fundo, ao pé da Cooperativa. Eu também fui um dos fundadores da Cooperativa.

Como aprendiz pagavam-lhe alguma coisa?
Por acaso já ganhava dez escudos por dia, naquela altura.

Mas isso, comparado com quem já fosse oficial, era menos…
Era menos! Então, isso não tem nada a ver. Um oficial naquela altura devia ganhar ali uns sessenta escudos por dia.

Mas trabalhava o mesmo horário?
O horário era o mesmo, era seis dias, pegava-se às oito e largava-se às oito, e ao sábado também se trabalhava, depois é que começou só a semana inglesa, era só até ao meio-dia.

Nesse período de aprendiz, qual era o tipo de trabalhos que lhe davam para fazer?
Era tudo. Desde limpar o estaleiro, vamos, a… tinha que se fazer tudo. Era preciso limpar o estaleiro, limpava-se o estaleiro; era isto… “vamos fazer isto…” Tínhamos de fazer tudo.

Então e trabalhos já mais exigentes, como cortar certas peças?
A gente ia aprendendo: o mestre marcava umas tábuas, “vá, agora vai lá serrar isto” – serrava-se à mão, não é à serra como e agora, era tudo a serra de mão, traz! traz! [exemplifica por gestos]. Depois: “agora serra isto aqui”… e a gente ia começando assim… “agora está aqui esta plaina, à mão, aplaina lá isto, endireita lá isto”… E era assim que a gente começava a trabalhar. Depois, “olha, está ali um rombinho numa aiola, vai lá ver, pôr aquele rombo”… Um gajo abria o rombo, chamava o mestre, “vai lá ver, isto está bom assim?” – “Tá. Então mete lá isso”. E a gente depois ia metendo, foi assim que a gente começou a aprender, pronto, ia-se fazendo uma coisa de cada vez.

A seguir a aprendiz, como é que se chamava a categoria seguinte?
Carpinteiro de segunda, ou carpinteiro de terceira.

Quem é que decidia essa passagem de categoria?
Decidia o sindicato, na avenida 24 de Julho [em Lisboa], a gente ia lá fazer um exame… ia-se lá, fazia-se o exame para trazer um cartão, que eles davam depois um cartão, se era de segunda, se era de terceira, ou de primeira.

E aconteceu consigo?
Aconteceu. Ainda fui lá uma vez.

E correu bem, o exame?
Correu. Trouxe categoria de segunda.

E quanto tempo tinha estado como aprendiz, antes de ir fazer o exame?
Eh pá, isso é que eu já não me lembro… Devia ter ali uns cinco anos, já, de ofício.

Quando diz que foi fundador da Cooperativa, quer dizer que já era como se fosse um mestre, já era carpinteiro.
Ainda não era bem bem bem… pronto, quando montei a Cooperativa tinha 22 anos, foi logo a seguir ao 25 de Abril, tinha 22 anos. Depois é que me deram o ordenado de carpinteiro sem eu estar a pedir nada. Não fui eu que pedi, eles é que me deram.

Houve um fundador dessa Cooperativa meu tio, o José Aldeia.
O seu tio não foi fundador, veio seis meses já depois de termos montado a Cooperativa. Foi dos princípios. A Cooperativa já estava formada e ele, e o senhor Manuel Albano, e o Albano também, vieram de Angola e depois, poucos meses logo da gente ter formado a Cooperativa, prontos, e a gente, era gente da terra… Meteu-se gente da terra e de fora, também.

Eu sei que a ideia inicial da Cooperativa era juntar todos os carpinteiros todos, mas depois houve alguns que resolveram ficar de fora.
Pois. Foi o senhor João Farinha, foi o senhor Acácio Farinha também, e foi o senhor Pedro Brazinha, foram os que não se juntaram. O senhor Picão depois esteve dois anos ou três na Cooperativa, não se deu bem, saiu, depois montou um estaleiro para ele.

Eu lembro-me de que a Cooperativa ainda fez ali uns barcos valentes.
Fizemos uns barcos… Fizemos dois barcos grandes, com trinta metros, um foi para o Mestre de Aviz, que era do senhor António da Gertrudes, e foi o Vontade de Vencer que era a Cooperativa [de pescadores]. Depois fizemos também o Luís Adrião, o Estrela de Sesimbra, e diversas obras, fizemos diversas obras. Este barco que está aqui [aponta na direcção da Estanaval], o Estrela Divina, isto era um barco de popa de leque; aqui o Direito ao Destino, também era uma Cooperativa, também era de popa de leque.
Está aqui o Direito ao Destino, este barco, antes de ser o Direito ao Destino foi o Graças a Deus, apanhou o 8 de Maio, teve um vendaval, morreram duas pessoas… o ciclone, pronto. Este barco também tem a sua história.
Ali a Família Samagaio também foi feito lá em baixo na Cooperativa, também ajudei lá a fazer com eles.

A Cooperativa, pode-se dizer que ainda existe, é esta empresa que existe hoje [Estanaval], mas isto sofreu muitas mudanças…
Um bocado, houve umas mudanças aí, agora aquilo…

Mas, diga-me, aquele espírito de “todos juntos” começou a desaparecer? Ou o que é que aconteceu?
A Cooperativa, é assim: aquilo todos queriam mandar, todos são patrões e depois, onde todos mandam, aquilo de alguma coisa tem que vir a dar, não é?

No seu caso, como é que se estabeleceu como carpinteiro autónomo?
Eu depois saí dali, comecei a trabalhar por minha conta.

Em que sítio?
Ali ao pé do salva-vidas.

Um pequeno estaleiro?
Sim, ali. Comecei a trabalhar numa Associação, Centro e Sul, que é já ali. Depois foi, depois estes carpinteiros daqui [aponta as actuais instalações] desistiram e depois eu mudei para aqui, pronto. E agora estou aqui eu, já aqui há dezoito anos.

É uma empresa sua, digamos assim?
Pois, empresa minha.

Quando começou era sozinho ou já tinha aprendizes ou ajudantes consigo?
Sozinho.

Mas agora já tem…
Tenho dois filhos. Tenho dois ou tenho um, pronto! Tenho dois mas só um é que conta.

Só um é que está mais permanentemente a trabalhar?
É, [o outro] trabalha na Câmara também, nas águas.

E gostava que dessem continuidade à empresa?
Pois. A continuidade é assim: eu estou aqui há dezoito anos, isto já tem aquase trinta e tal… Os carros disto que está aqui, está tudo podre… isto há aí milhares de euros para gastar… quem é que vai gastar nisto?
Eu agora montei ali umas calhas que estavam mesmo tudo danado, houve ali uns barcos que tiveram ali uns acidentes, fiz ali umas calhas novas, gastei dezasseis mil e tal euros… a administração portuária vai pagar em dez anos…

A Administração é que paga?
Foi feito por mim e vão-me pagar. E é assim: eu é que montei lá as coisas, para não falar com uma empresa, para não gastar esse dinheiro e eles a mim já não me querem pagar a minha mão-de-obra! Estão a ver?

Mas eles é que ficam com o investimento.
Eh pá, É assim: eu estou cá, pelo menos dez anos vou cá estar, dez anos também dou cabo daquilo tudo, em dez anos.

Agora gostava de falar sobre construir uma embarcação propriamente dita: este processo que é imaginar uma embarcação, ou receber uma encomenda.
Assim: quero um barco de tantos metros, ou uma barca.

Como é que se processa isso? O cliente chega ao pé de si e diz: olhe, quero um barco de tantos metros…
Eles faziam um molde, um modelo, faziam aquilo à escala e tal…

O carpinteiro fazia aqueles modelos, meio casco?
Exacto. E depois punha aquilo a gosto, havia armadores que punham a caverna do meio, punham uns armadores e depois iam enchendo, fazendo moldes, e assim enchiam aquilo a gosto.

E chegou a trabalhar assim?
Não, não. Eu já não fiz barca nenhuma em Sesimbra. Só barcos. A gente, os barcos, era tudo riscado: vinha o desenhador, desenhava o barco, depois passava-se para o chão e do chão a gente tirava as grades.

Mas essa passagem do desenho é já feita por si?
Não sou eu, nunca fiz isso. Havia outros colegas meus, o sr. Manuel Ferreira, que a riscar era um grande riscador. Mas assim riscar, nunca. Já apanhava tudo feito. Só fazer grades e escantilhões.

E aiolas, chegou a fazer alguma?
Chegámos a fazer aqui, mas eu por acaso nunca trabalhei nisso. Arranjei muitas e ajudava a fazer, mas começar de princípio a montar e essas coisas, não. Conheci aí pessoas a trabalhar que faziam isso.

No outro dia fez aqui um barco que praticamente foi todo novo.
Esse foi todo novo, não ficou lá nenhuma peça velha.

Chamava-se Deus é Luz, é isso?
Deus é Luz. É assim: aquele barco era para uma obra [de reparação]. A gente começou a desmanchar e não estava nada capaz…

De certa forma, fizeram igual ao que estava?
É quase: ficou um bocadinho mais alto… depois pôs-se mais à maneira da pessoa para trabalhar. Mas, mesmo assim, teve que se fazer muita coisa pelas medidas que lá estavam.

Hoje aparece alguém que encomende um barco de madeira novo?
Não. À uma, não há ninguém que venha mandar fazer e outra, a gente não consegue fazer um barco já hoje.

Porquê?
Não temos pessoal para fazer, Nem, olhe, nem conseguimos arranjar madeiras.

Não?
Eu não consigo arranjar madeira para trabalhar ainda. Eu ia a Grândola, a Alcácer do Sal, arranjar madeira: essa serração agora fechou. Agora tenho que ir lá para Leiria… é pessoas que não conheço, já me deram informação e tal, tenho que lá ir saber o que é que lá está, e o que não está, para eu saber o que é que vou escolher para mim. Está a ver?

Ou seja: existem árvores, mas não existe ninguém a quem se possa dirigir?
Não. Antigamente a gente dizia: “eh pá, traz lá um pau assim, serrado a tal medida, com um cantozinho jeitoso e tal…”, o gajo sabia o que é que ia buscar. E hoje se eu disser “um canto” eles nem sabem o que é um canto. Um gajo, hoje só corta, põe lá na serração para cortar, aquilo é tudo aos dois e setenta, cortam tudo aos dois e setenta e pronto. É madeiras curtas para as obras e é só o que fazem.

Mas reparações de barcos de madeira…
Ainda aparece, aparece. Eu agora tive aqui um de Setúbal, foi todo entabuado até à proa, da proa, dum lado e doutro.

Um barco de pesca, ou de recreio?
Da ganchorra, é de pesca, da ganchorra, do arrasto!

Uma arrasto pequeno?
É. E assim sucessivamente. E não há mais. Estou ali a fazer aquela obrazinha – uma obra pequena pronto! – mas se aquilo fosse a mexer, a mexer, tinha ali mais para mexer.

Falou ainda há pouco de algumas pessoas, como o António Ferreira, eram considerados grandes mestres, não era? Que concebiam um barco desde a origem. Lembra-se de mais alguns nomes, mesmo mais antigos, que eram pessoas de referência?
Eu trabalhei com um homem, ele não sabia uma letra do tamanho destas caixas. Nem sabia ler nem nada.

Era analfabeto, mas construía…
Mas a trabalhar com a ferramenta, trabalhar, tinha um gosto espectacular! O homem montava ali, ponha isto assim e tal, mete lá… [gesto de perfeição] Pessoas que nasceram mesmo…

Tinha o talento.
Sim senhora.

O nome dele, não se lembra?
Manuel Costa Braz.

Aqui em Sesimbra?
Cá em Sesimbra. Trabalhou cá, depois foi para Angola, e depois em seis anos ou sete, veio, e depois pronto, veio o 25 de Abril, eles vieram para cá, outra vez para… eram de cá da terra!

Como é que vê o futuro desta construção de madeira, artesanal, estes saberes antigos?
Acaba. Acaba porque o nosso Estado não olha para isto, e isto não é com pessoas com dezoito ou vinte anos que se vem para aqui aprender o ofício, que aprende. Essa pessoa com dezoito ou vinte anos, quando sai da escola, já tem outras ideias, não tem a ideia, para a vida, de aprender um ofício. E este ofício aprende-se aqui a trabalhar, a estar aqui. Não é com teorias. Não é como o curso que eles pensaram em dar, que era para dez [pessoas] só apareceram sete. Até reformados cá estavam…

Para aprender a construção naval?
Para aprender a construção naval. Estavam três ou quatro rapazitos que eram capazes, mas isso não era em seis meses que eles queriam fazer para aprender, [para] fazer um carpinteiro. Nem pensem!

Mas era consigo?
Era comigo e com eles [aponta para a Estanaval], era à sociedade uns com os outros. Prontos. Para não ser só um, um dava um dia, outro dava outro… Mas assim não. E depois é a tal coisa: isto estes serviços não aparecem.
Antigamente havia muitas obras novas, metia-se aí meia dúzia de rapazes ou isso assim, mas eles agora saem da escola com aquela idade, quando vêm para aqui já não querem vir, querem é ir [trabalhar] para o supermercado, vão ali com a roupazinha limpa, não apanham chuva, não apanham frio… o ordenado mínimo vêm aqui, e eu não consigo pagar um ordenado mínimo, para um aprendiz vir aqui, estar aqui a ver para eu… e eu dizer “eh pá dá-me um martelo, ou dá-me isto”… Há uns que têm esse feitio, eu não tenho… “É isto. Faz isto…”. Não. A pessoa está aqui, estou cheio de trabalho para [ocupar-me de] essa pessoa.
Um supor: ele vinha para aqui aprender a carpinteiro… eu tenho o meu filho agora que está a lavar aquele barco, se eu se calhar mandar o rapaz [aprendiz] lavar o barco ele diz-me assim: “Mas eu vim para aqui não foi para lavar barcos, vim foi para aprender a carpintaria”… Mas eu também lavo barcos.

Aliás, hoje, segundo tenho reparado, num barco, aparece trabalho que o carpinteiro tem de fazer mas que já não é de carpintaria, como coisas relacionadas com mecânica.
Serralharia. É assim: o meu filho também solda, também faz bocados em inox, aquelas bordas falsas [aponta para um barco em reparação], a gente faz isso. E porque é que a gente tem que fazer? Porque se a gente está à espera do outro [profissional] que venha cá fazer trabalho, depois estamos parados à espera dele e nãos sei quê… E então fui obrigado.

Também trabalhamos na fibra, faço umas coisitas de fibra.
Mas não há como o barco de madeira, para o trabalho, um barco seguro, o barco de madeira é o melhor barco para trabalhar. Ponham ferro, ponham fibra, não…

É mais estável e navega melhor, não é?
Exactamente.

Há um barco aqui em Sesimbra, que é considerado… é a aiola. É um barco complexo, é complicado?
É como tudo! Aquilo só é complicado porque quem não percebe nada daquilo chega lá e diz assim: “mas como é que eles fazem isto?” Faz-se tudo!

Mas, no seu caso, repara qualquer barco?
Sim! Eu já não reparo porque [se] eu vou reparar uma aiola, trago para aqui a aiola, levo quatro ou cinco dias, se levar o dinheiro que vou levar ali a um barco, o gajo diz assim: “eh pá, então isso foi mais caro do que a aiola!”
E então, para estar a ouvir essas coisas, eu não… À uma, eu não consigo arranjar madeiras e coiso, aquilo tem que ser umas madeiras finas, pôr tabuado, os braços têm que ser aquele redondozinho, e isso agora não há. Por acaso ainda tenho ali alguns que, volta e meia, ainda vou aí e acho, ainda vou serrando.

Ou seja: por ser um barco pequeno, embora na forma seja tão complexo como um grande, mas por ser um barco pequeno, há ali uma dificuldade das madeiras?
Não, aquilo a gente tendo as coisas, aquilo é simples.

Mas tem dificuldade em arranjar essa madeira?
Tenho. Tem-se dificuldade em arranjar isso. Temos dificuldade. Mesmo para estes barcos aqui [aponta para barcos grandes] eu tenho dificuldade em arranjar madeiras. Tanto o manso como o pinho bravo.

Esses barcos pequenos, quando precisam de reparar, a quem é que recorrem?
É a mim ou ali à Estanaval. Não há mais ninguém. Eu sou aqui o mais ou menos e eles têm ali dois carpinteiros.

E os remos, quem é que faz?
Eu faço. Eu tenho ali tanta madeira para fazer remos! Mas eu só faço remos quando está a chover, ponho-me ali dentro [aponta para a oficina] e faço. Se eu vou perder tempo para fazer aqui dois remos, coiso, e assim se for faço todos logo. Tenho ali, já serrados e tal. Eu digo: “olhe, quando estiver a chover eu faço”. É quando posso ter tempo, se tiver chuva aí, olha, vai para dentro. Mas isto agora também chove pouco [ri-se].
Ali na Cooperativa chegámos a ter dezasseis carpinteiros – carpinteiros! Fora calafates e serralheiros. Quando a gente fez aqueles barcos grandes, e fizemos umas grandes obras também, a gente, barcos mesmo quase todos novos, a Venturosa, a Sesimbrense, foi tudo barcos que foi tudo alterado e praticamente foi tudo novo. Fizemos um também lá para os Açores, para a Terceira, esse até depois revirou e morreram umas pessoas lá dentro. Foi. Que era de um rapaz cá de Sesimbra que era o António Afonso.

E o nome do barco, não se lembra?
Não me lembro. Era igualzinho ao do Samagaio.

Ainda sobre a questão aqui das madeiras, a dificuldade é arranjar aqui serralharias que trabalhem com o tipo de madeira, ou o formato da madeira?
É tudo isso, Porque, um supor, tu vais aí…. Aqui na nossa zona não há serrações, a serração, parece, mais perto que há aqui, eram uns gajos que era o A. Silva & Silva, mas só cortam madeiras curtas.

E direitas?
E direitas. Onde eu ia, a Alcácer do Sal, já aí é que eles tinham já madeiras, o pinho manso, foi sempre uma haste, é sempre uma haste, aquelas pernadas que é para fazer os redondos. E havia outros direitos também. A gente, lá, chegava lá, o homem tinha lá o estaleiro cheio de madeira, a gente “Olhe, quero este pau, quero este, quero serrado a quatro grosso, a cinco grosso, a seis grosso”… e o homem já sabia o que é que a gente queria.
Hoje, se a gente não estiver lá, eles é de qualquer maneira e… e é como eu digo: onde eu ia agora já não vou lá, esse já acabou. Agora tenho que descobrir outro. Já me falaram lá para Leiria…

A qualidade da madeira também é importante…
Eu, para mim, acho que o tabuado para fora, o pinho bravo, e por dentro é o pinho manso; os braços, as cavernas, é pinho manso, é madeira rija, para pregar pregos aguenta bem. Esse barco [aponta uma embarcação] tem cinquenta e três anos, e está aí.

Temos reparado que nas aiolas, os veios são cortados sempre numa determinada maneira. É por alguma razão especial? Os veios estão sempre a direito?
Às vezes alguns ficam atravessados, mas o que fica atravessado depois está sujeito a partir, estás a perceber?

Ainda conheceu aiolas à vela?
Não. Já não me lembra de malta a trabalhar com aiolas à vela. Conheci algumas aiolas à vela, mas só… era por desporto. Lá o Zé Arsénio tinha uma. Foi das últimas aiolas à vela que houve aí foi essa aiola dele.

O Manuel Ferreira punha as madeiras dentro de água.
Pois, punha-se. Ainda se põe!

Para quê? Para depois poder dobrá-la?
Para vergar melhor. E há quem ponha… eu também tenho ali uma estufa onde ponho.

Mas a estufa é só calor ou também tem humidade?
É só com humidade. A estufa, ponho água a ferver a água ferve, o vapor depois é que coze a tábua.

Diz que “coze” a tábua?
É, é. Cozida uma horazinha ali a ferver à força. Tenho ali montada. Ainda não há muito tempo, em Maio, esteve a trabalhar.

Quanto tempo demora a construção de uma aiola?
Uma aiola, um homem que esteja feito àquilo, em três semanas faz uma aiola. Que esteja agarrado àquilo.

Ou seja, sem fazer mais nada?
Mais nada. E que esteja feito… Agora, é assim um supor, um gajo agora fez uma aiola, agora [depois de] quatro ou cinco anos vai fazer outra… esquece-se!
Agora se ele estiver a fazer uma aiola hoje, acabou aquela começa noutra, aquilo para ele é… Está a ver? A pessoa está batida naquilo, faz aquilo bem.

Quanto é que custaria construir uma aiola hoje em dia?
Uma aiola hoje em dia deve andar entre aí uns quatro mil – como tudo, depende dos comprimentos. O normal duma aiola de Sesimbra, normal, uma aiola normal, é três metros e vinte e cinco. Mas há um: “Ah eu quero uma aiola mais compridazinha, eu quero com três metros e quarenta… quero com três e sessenta” – já tem de ser um bocadinho mais larga, pois, tudo essas coisas. Uma aiola anda sempre entre os quatro mil e os cinco mil euros. E calafetagem, aquilo leva um calafate.

A calafetagem da aiola é especial?
Era, antigamente era, antigamente era o algodão, havia um algodão que já vinha enrolado, hoje já não há.

Lembro-me que se fazia calafetagem com um escoprozinho.
Era um ferro, aquilo era um ferro parecido com um escopro.

Mas se aparecer alguém a encomendar uma aiola, feita de raiz, já não faz?
Pois não. E não consigo fazer uma obra destas, por isto: tenho muitas embarcações para trabalhar, e então não consigo fazer uma coisa destas. Tinha que largar tudo para vir para aqui. Se eles já estão aflitos para ir para o mar… É isso. Por isso é que eu não aceito um trabalho desses.
E depois isto é assim: o trabalho, tem que se agarrar e nunca se pode largar. Porque isto é uma madeira fina, isto começa a [exemplifica movimento com as mãos] a empenar, entorta, entorta, e depois a gente não consegue fazer nada disto.

João Augusto Aldeia
Iolanda Ávila
Virgínia Palmeirim

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Editor
Director do jornal O Sesimbrense