Maria Francisca Silva Pereira

Maria Francisca Silva Pereira nasceu em Sesimbra em 1935, tendo trabalhado praticamente toda a vida como costureira, especializada em fato de homem. Nesta entrevista conta-nos diversos aspectos daquela profissão, nesse tempo organizada em ateliers estabelecidos nas casas das “Mestras”. Para além de curiosidades da profissão, Maria Francisca Silva Pereira fala-nos também do ambiente de convívio entre as costureiras e das partidas que se pregavam.

Qual foi o primeiro trabalho que teve?
Tinha eu 7 ou 8 anos, a minha mãe trabalhava para o Manel Fuzeta e em cada Domingo levava uma filha, para tirar as saquinhas do grão, e as coisinhas dali e com uma escova pequenina, para esfregar aquelas tábuas. Todos os Domingos: cada Domingo levava uma.

Mas o Manuel Fuzeta era uma…
Era uma mercearia, e a minha mãe fazia limpeza ao Domingo, dia em que não vendiam, e a minha mãe levava cada Domingo uma filha.
Depois fui coser para casa da mãe da Sezita, na rua Joaquim Brandão – que eu nasci na rua Joaquim Brandão – depois em frente morava a minha tia Umbelina, que era a mãe do Joaquim Hipólito, do Joaquim Piloto, que o marido era mandador da armação da Varanda e ela, quando queria recados vinha à janela e dizia assim: “Oh Aurora, deixa a Francisca ir ali ao recado…” E eu ia!
Um dia ela mandou-me ir à botica buscar um medicamento, mas eu não sabia o que era a botica: fui à minha mãe e disse assim: “O mãe, a ti Umbelina mandou-me ir à botica e eu não sei onde é que é.” E ela explicou-me: “Rapariga, é a farmácia!”
Eu venho lá do tanque, lá de cima, onde é que é hoje o refeitório da Câmara e vou à farmácia. Quando cheguei lá levo uma descompostura porque levei muito tempo no recado. E eu disse assim: “Com nove anos, estou aqui a levar descomposturas, onde é que eu devia estar na escola. Já não quero coser aqui!” Foi quando a minha mãe disse: “Tens duas primas do teu pai que são costureiras: é a Mariana Garanga e era a Isidora, a mulher do Zé Balinhas”.
Eu, a primeira foi na Mariana Garanga; naquela altura tinha estado ela muito doente, com uma pneumonia, que eu ainda assisti àquilo, ainda lá ia o doutor Costa auscultar e essas coisas, que eu lembro-me perfeitamente e o Zé Canola disse: “Ah rapariga, anda cá, o que é que tu queres?” – “Ah a minha mãe disse que o meu pai tinha aqui uma prima costureira e eu vim pedir para vir coser, que eu já não quero coser no outro lado”. Olha: fiquei agarrada! Nunca mais saí dali. Só saí para casar: estive doze anos e tal ali!
Quando começou, o que é que fazia?
Primeiro comecei a partir as sacas do carvão, aos bocadinhos, para pôr nos caixotes, para depois acender o ferro… Era aprendiza, ia buscar baldes de água para o sótão, que era onde é que estava uma banheira, para molhar as fazendas, acender o ferro, engomar as fazendas – porque as fazendas, para fazer os fatos, era tudo molhado. Foi bem um ano assim, sem ganhar nada!
Naquela altura estavam lá: a Rosa Balugas, a Cacilda (que era sobrinha da tia Dores), a Inácia Coque (que era irmã do Francisco Emília), a Maria Gertrudes, essas raparigas. E a Rosa Balugas gostava muito de levar os fatos e ir entregar os fatos e não deixava eu levar, ela é que gostava de ir, ela não precisava de coser e então as gorjetas depois dava-me a mim. Era o que eu ganhava, era as gorjetas.
E assim foi até que depois comecei a aprender a meter algibeiras numas calças. As primeiras calças que eu meti – nunca mais me esqueço – foi do boneco que o Luís Borges tinha aqui na montra: umas calcinhas à golfe!
E dali para diante fui seguindo, fui seguindo, até fazer um fato de homem!

Essa costureira, quantas pessoas tinha a trabalhar?
Chegou a ter 14 ou 15 raparigas. Até tinha raparigas que já não eram… que foram lá costureiras mas que saíram para casar e depois, pela necessidade, ou iam meio-dia ou iam um dia: como se vai trabalhar hoje a dias! A Ângela, a mãe da Vitorina; uma rapariga que era irmã da Violante Lameiro, também já morreu; essas raparigas iam coser a dias: ou uma parte da tarde, ou uma parte da manhã, e estavam ali, já eram casadas, já tinham filhos…
Olha a Ângela, a Maria Cândida, a irmã dela, também esteve lá, era a Rosa Balugas, era a mulher do Pato Marreco, não era? Pois, a Maria Emília ali da Fonte Nova, irmã da Maria Gília… elas eram todas amigas. A Ilda que era a mãe da rapariga que casou com o Zé Manuel padeiro, antes de ir para África também lá esteve.
E ali estive até… eu era para casar antes do Natal, depois ela pediu-me: “Francisca, casa depois do Natal que é para ainda coseres o Natal” – que eu depois fiz o fato do noivo, o fato do meu marido, foi a prenda que dei a ele foi eu coser até ao Natal.
Eu fui criada lá como costureira, mas também era da família dela; quando a tia Juvina estava doente, ficava, até já depois de casada, ela vinha aqui à minha casa, quando estava de noite doente o Zé Canoa vinha-me buscar e eu ia mais a minha filha… Foi sempre uma pessoa de família.
E fui tratada como uma pessoa de família. Ela tinha um feitio muito especial! Mas também eu não respondia, ficava calada. E como ficava calada estava sempre bem. Ainda hoje.

Quando começou a trabalhar como costureira ganhava quanto?
Eu cheguei a ganhar, olhe: 25 tostões, 4 escudos, 5 escudos, 7 e quinhentos…

E trabalhavam muitas horas?
Das oito da manhã, ia almoçar uma hora… depois daí já fui morar para o Bairro dos Pescadores e entrava às duas horas e saía às oito. E quando não se fazia serões!…

E os serões eram pagos?
Meio dia, o serão era meio dia.

Mas havia períodos do ano em que havia mais trabalho?
Ela tinha sempre trabalho, mas perto da Festa das Chagas e perto do Natal havia mais trabalho. Mas ela era uma costureira, a Mariana Garanga, a Isidora, Satira e Luzia, tinham sempre trabalho. De alfaiate.

As pessoas, quando havia festas, faziam fatos melhores, mas também encomendavam roupa para o dia-a-dia?
Não: encomendavam ou uma calça, ou uma camisola. E as camisolas ela pouco aceitava porque tinha muito trabalho de fato de homem. Aceitava para a irmã, para a Juvina, para a minha Ti Candinha, que era prima, era a mãe da Candinha casada com o Mário.. Tinha sempre trabalho de fato de homem.

As pessoas que usavam roupas mais humildes, como é que as arranjavam?
Algumas faziam, tinham as mulheres que sabiam fazer. A minha sogra fazia as camisolas para o filho, as camisas, até podia ser que a sua mãe também fizesse.

Foi costureira até casar, e depois?
Depois, casei e vim para esta casa: vim mais uma prima minha que era a mãe do Augusto Pólvora, tanto que o Augusto Pólvora nasceu aqui na minha casa. A minha filha nasceu a 17 de Novembro e ele nasceu a 19. E depois começámos as duas a coser, eu não tinha comprado máquina, a minha prima naquela altura disse assim: olha, eu levo a minha máquina e começamos a coser as duas. Mas a gente, quando casámos, as nossas prendas eram muito reles, não era nada as prendas como agora: uma deu-me um saco de água quente, outra deu o saco do gelo, outra deu um penico… estas prendas todas assim.
E começámos a coser. Aqui ao lado morava a Amália, que era costureira de fato de senhora. O primeiro fato que eu aceitei, disse assim a minha prima: – “Ah prima, então a gente sabe fazer é fato de homem e o que é que a gente vai fazer? Espera aí!” Umas pessoas do Virgílio Lopes que moravam naquele prédio que se está agora a fazer na Galé, iam para África. Hoje já se compram os robes todos feitos, mas eles trouxeram o turco e eu fiz uma data de robes; fiz as roupas para os meninos pequeninos, aquelas balalaicazinhas, calçõezinhos, calcinhas… comecei a fazer assim, a talhar.
E depois comecei a fazer as camisolas à pescador, que eram estas normais, como tenho ali do meu marido. Aí é que eu fiz muitas camisolas e muitas calças.
Depois começou-me a aparecer pessoas para virar fatos, que antigamente viravam-se os fatos. Eu desmanchava o fato, o fato era de fazenda boa, desmanchava, lavava e tornava a fazer o fato. E depois, daí em diante, com aquele fato eu tirava as medidas, tirava os moldes e ultimamente fazia fatos, cheguei a fazer fatos de homem. Foi a minha vida de costureira.
Só há poucochinho tempo, que eu ainda tive cá a mulher do Zé Mangaz, a Maria da Arrábida que era casada com um daqueles rapazes que têm um coiso lá ao pé da armação da Varanda, tive aqui 4 ou 5 raparigas. Mas naquela altura, quando saí da costura, eu fazia um fato de homem e ganhava 12$50; depois deixei de ter raparigas, fazia só para mim, eram 35$00, ou 40$00, e começou a vir a roupa mais barata: já comprava calças para o meu marido mais baratas do que o que eu levava a fazer.
A quem eu fazia as calças era para o pai do Arsénio Rosa, que morava ali por baixo daquele prédio do João Rasteiro (um rapaz que também tira fotografias e que fez um livro da Festa das Chagas) – o pai desse rapaz é que gostava das calças feitas por mim e não gostava de calças feitas de compra. Porque não gostava de fecho, queria ainda a breguilha.
E depois deixei de fazer. Tive a minha filha: também foi para ela estudar, para ganhar alguma coisinha que eu cosia. O meu marido também andou sempre numa barquinha boa, graças a Deus. Fui aproveitando a minha vida.

Como se chama o seu marido?
José Manuel Baeta.

Foi aprendiza durante quanto tempo?
É assim: fui um ano aprendiza, depois comecei a coser: primeiro faziam-se as entretelas, as golas – que era tudo a pontinho – aprender a fazer as mangas do casaco e depois aprender as calças, e depois de fazer as calças é que se começou a meter as golas nos casacos, até chegar ao casaco completo, mangas e tudo. Foram muitos anos!
Eu lembro-me de uma ocasião, queimou-se umas calças – era um ferro de carvão: o ferro abriu-se e até pôr o ferro no lugar ficou a pele agarrada. E uma ocasião queimou-se, não havia fazenda, ela foi a Lisboa à procura de fazendas para comprar e o alfaiate disse assim: – “Oh minha senhora, isso não se diz a ninguém: manda-se cerzir, são segredos do trabalho!” E pronto, daí em diante quando se queimava alguma coisa ia a Lisboa para cerzir.
Os nossos pescadores de Sesimbra vestiram sempre bem. Qualquer rapaz pescador de Sesimbra vestia-se sempre bem, não andavam cá mal-arranjados. O meu pai, era no outro tempo e contava a minha tia: a minha tia queria fazer um fato mas queria que tivesse colete, e ele não queria colete; depois a minha tia entendeu e ele fazia tudo quanto a irmã mandava. Quando foi no dia da Festa das Chagas a minha tia disse: ele atentou-me tanto naquele dia da Festa das Chagas que ao pé o café Central ainda lhe fez assim (estica os braços) que o casaco estava curto de mangas!

E como é que ocupavam o tempo? Estavam sempre a conversar?
Conversávamos. Às vezes estávamos caladas, estava lá a costureira ao pé da gente e estávamos caladas, conversávamos apenas coisas do trabalho. Quando ela vinha cá abaixo a gente… papagueava. Ou vinha ao terraço… havia muita paródia. Às vezes ela ia à praça, ia a uma banda qualquer e a gente fazia cá das nossas… Olhe! As fardas da Música! Houve um ano que fizemos fardas para a Música, o trabalho foi repartido pelas costureiras. Estava lá uma farda do Virgulino e uma vestiu a farda do Virgulino, nisto a Maria Garanga veio pelas escadas e ela meteu-se no terraço, despiu a farda no terraço e ficou a farda em cima do telhado, depois começou a chover, ficou a farda molhada… havia estas paródias!…
E eramos boas colegas. Eu tinha que aguentar muita coisa porque era prima dela e depois ela chamava-me para saber as coisas, mas eu não dizia!
Cantávamos. Aprendíamos a cantar o que se ouvia na telefonia.

Lembra-se de algumas músicas desse tempo?
Ah, o Fado Malhoa, coisas da Amália Rodrigues. A vida era muito pesada ao pé do que é agora.

Mas no trabalho tinham telefonia?
Tinha, tinha, ouvia-se os romances que davam na telefonia. Foi muitos anos. E então ir almoçar? Sair dali, ir almoçar ao bairro dos Pescadores… Dava cá um cheirinho tão bom passar ao pé da Virgilinda, ao pé do António Mateus, depois chegava a casa não era nada daquilo. Nem comia! Eram favas! Dizia a minha irmã Filomena: “Só sabe fazer favas!” E dizia assim a minha mãe: “Ainda te dar as favas!…”

Nesse tempo também se contavam histórias de bruxedos, coisas misteriosas…
Contava-se, contava-se coisas lá da Califórnia, que havia lá uma mulher que fazia partos, a gente ouvia estas coisas assim

Também se dizia que ali na Alfarrobeira aparecia um gato preto…
Pois, que era o lobisomem… eram essas coisas assim, a gente tinha medo. Tanto que a gente, quando fazia serões, o marido da nossa costureira tinha que nos levar a casa, porque tínhamos medo.
As histórias eram do lobisomem, da parteira… uma parteira lá na Califórnia, quando a iam chamar, depois tapavam os olhos, era entrar em casa da pessoa, era o quarto, depois metiam o dinheiro na mão e ao outro dia aquele dinheiro era uma moeda de ouro!
O meu avô vestia tamancas e barrete, e a minha mãe contava uma história do meu avô, que lhe vou contar agora. Ao lado onde é que é hoje o Zé Camarão, está ali uma casa que era dos Caminhões e aquilo tem uma porta para a rua Joaquim Brandão. E então o meu avô andava ao mar nesse bote do pai do Diamantino Caminhão – do avô do Diamantino que teve ali no Adelino, porque a família da minha mãe, ou seja, do meu avô, ainda pertencia aos Caminhões. O meu avô sai dali e antes de ir para o mar deu-lhe a vontade de ir sujar àquela fossa que está hoje fechada; aparece o cabo-de-mar ao pé dele, para lhe acompanhar… o meu avô disse assim: “Calminha… calminha, tenho que apanhar as calças” – apanhou as calças, amarrou a cinta, apanhou os tamancos do chão e abalou a fugir, entrou por aquela porta cá da frente e saiu pelo outro lado.
O cabo-de-mar entrou lá e perguntou: “Não teve aí um homem assim assim assim?…” O meu avô mete-se pela rua do Saco, aquela porta ao cantinho morava o pai do Zé António que era casado com aquela da Petinga… o meu avô meteu-se ali em casa da filha. “Se apanho o Francisco da Costa vai preso”, dizia o cabo-de-mar – a minha mãe contava muitas vezes esta história do meu avô.

Ele andava num bote, mas apanhavam o quê?
Era daqueles botes grandes e tinham aparelho. Depois é que compraram a barquinha pequenina e depois vieram as barcas grandes, porque já havia os bancos, já emprestavam dinheiro, na outra altura não emprestavam dinheiro. O meu tio Carlos, o pai da minha prima Cândida, chamavam-lhe a ele o Carlos Caminhão, e ele dizia assim: “Eu sou Caminhão porque sou dos pobres, os Caminhões ricos é o Augusto Caminhão, e o Manuel Caminhão”.
O meu marido andou em duas barcas: primeiro foi no Soromenho, 25 anos, e depois foi no Manuel Caminhão, uns 23 ou qualquer coisa. Depois com 55 foi quando lhe deu um enfarte e foi quando deixou logo de andar ao mar. Mas, graças a Deus, com dois enfartes que lhe deu e com sete operações, está muito bom.
Mas eu também me lembro duma parte assim, uma parte do Carnaval: mandaram-me vir aqui, ao Fernando Rasteiro, buscar qualquer coisa e estava cá o Zé Pato e mandou-me levar aquilo para a Cacilda, que elas tinham mandado pedir. Quando foram abrir, era uma “senhora” rata toda temperada: com salsa, com cebola, com tudo. Ela diz assim: “Não faz mal, que ele mandou isto mas ele cai também!”. Depois, uma ou duas semanas depois, mandaram-me buscar bolos e uma garrafa de vinho do porto ou coisa… Olhe: nunca mais pagaram!…
Outra vez fomos brincar ao Carnaval: era a Virgínia, era a Margarida, e a tia Adelaide arranjou uma tijela da casa ali no quintal, todas fizeram xixi dentro da tijela da casa e fomos mandar ao Alexandre da Emília Ramos, onde é que era o Vítor Pau Seco. E abalámos a fugir para a escadas da tia Maria Cândida, cada qual fugiu para o seu lado e ficámos recolhidas. Depois, era a mãe do Alexandre e o Alexandre, Mané Ramos, a arrematar: “Malandros, quem veio pôr aqui isto?… Eram estas coisas…

João Augusto Aldeia

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Director do jornal O Sesimbrense