José Manta

Uma comissão militar no Estado Português da Índia, aquando da invasão pela União Indiana, foi a grande aventura da vida de José Manta. Mas os períodos em que emigrou para a Alemanha e para a Namíbia também lhe proporcionaram uma enorme experiência de vida, completada ainda em Portugal no Arsenal do Alfeite e na indústria da pedra do concelho de Sesimbra. Foi soldado, pescador, pedreiro, canteiro e ainda aprendeu um pouco do ofício de electricista. Hoje, residente nas Caixas e já reformado, ainda trata de uma hortas.

Como se chama?
José Vaqueiro Rodrigues Manta. O meu avô era o Vaqueiro Borda d’Água. Foi um tipo que apareceu aí nas bordas da Lagoa, e o nome que lhe deram foi Vaqueiro Borda d’Água e então ficou a família descendente dele a família Borda d’Água. Já foi há mais de 100 anos.

E ele morava onde?
Morava aqui na Aiana de Cima. Eu vim para ali com 8 anos e depois de casar é que eu vim morar para Alfarim. Depois de Alfarim mudei aqui para as Caixas.

E nasceu em que ano?
1938, 26 de abril de 1938.

Então conte-nos lá como é que foi parar à Índia.
Eu estava no serviço militar e como tinha a profissão de canteiro, então fui para a Engenharia. E a Engenharia, nesse ano, ia render um destacamento que estava na Índia. nesse ano em que eu fui, fomos render um destacamento. Foi no dia 26 ou 28 de abril de 1962.

Na Índia, antes da invasão, davam-se bem com a população?
Tudo, tudo à maneira! Tudo à maneira!

Chegou a aprender alguma coisa da língua deles?
Não, eles falavam Português, não tinha assim nada de que eu aprendesse com eles. Eles lá uns com os outros, era a “língua de cão” que eles falavam. Mas para a gente falavam bem o português: “Senhor isto, senhor aquilo”, tratavam-nos com a melhor delicadeza, e a gente também: e mal daquele que tratasse mal! Só algum que se metesse em problemas, mas isso era castigado.

Quando foi para a Índia, já se falava dos problemas com Portugal?
Já, já tinha havido. Em 1953, 54, houve um terrorismo lá. E depois o Nehru, que nessa altura era o presidente da União Indiana, comunicou com o nosso governo, que nessa altura era o Salazar, presidente do Conselho, comunicou com o Salazar para a gente entregar Goa, Damão e Diu.
Mas eles ocuparam Dadrá e Nagar Avelin, que eram os enclaves que estavam mesmo dentro da União Indiana – para transitar para estes estados. tinha que se ir pelo rio.
E de maneira que aquilo parou. Mas depois foi avançando o tempo, e o Nehru novamente, comunicando com o Salazar. E o Salazar: “Não, senhor. Não! Não!”
Eles começaram a concentrar tropas na fronteira da União Indiana para nos assustar, a ver se o Salazar entregava aquilo assim pacificamente. Mas o Salazar… “Não!”
Os oficiais reuniram-se lá – até por sinal, estava um aqui de Sesimbra, o capitão que era o comandante da polícia, capitão Pinto Braz – e que comunicaram para cá, para o governo da Metrópole, e o Salazar disse que não: “Combater até ao último homem!”
E de maneira que os oficiais reuniram-se, os comandantes lá dos quartéis, para nos concentrar todos. Eu era sapador, de minas e armadilhas, e fui destacado para uma ponte, lá no meio do mato, para que, quando houvesse um sinal, rebentarmos com aquela ponte. Eu armadilhei aquilo tudo, para estar preparado no dia em que viesse a invasão.

E chegou a rebentar com a ponte?
Sim. Eu e mais outro tipo, estivemos lá três dias no meio do mato, praticamente sem comer, nem beber: até tínhamos medo de ir lá ao rio, porque estavam lá crocodilos. Isto é real!

Como é que dormiam?
Dormíamos lá dentro de um barranco, com uma manta que ainda nos deixaram lá. Na primeira noite não dormi nada. Na segunda noite também não apareceram. Na outra noite, deitámo-nos lá dentro de um barranco e acordámos minados de carraças!
Pois, mas quando o furriel Azedas, que era natural de uma terra do norte, da Figueira da Foz – queria-me deixar sozinho, diz-me assim: “Manta, tu vais ficar aqui”. E eu digo assim: “E o meu furriel sabe quando é que eles virão ocupar isto? Eu não fico aqui sozinho: tenho a pistola, mato-me já! Porque eu sozinho aqui não fico.” Aproximava-se à noite e só se ouviam lobos – chamavam-lhes adivos, os cães selvagens.
E depois desses três dias digo assim: “João, o que é que a gente come, pá? – Olha, pega na espingarda, vai por aí fora, pede comer. Não faças mal a ninguém mas se tiveres que comer, a gente está aqui para morrer de fome, mas se tiveres que comer, mata! Traz que comer para a gente”.
E o João apareceu-me com uma massa de pão cozida no lume, na brasa, feito com farinha de arroz.
No outro dia de madrugada, estávamos nós a pensar o que seria de nós, ouvimos bombardear: “Olha, a artilharia!”
Depois, ao fim de um quanto tempo, vimos luzes próximas, digo eu: “Vem aí gente! Devem ser dos nossos”: vieram-nos buscar: “Já está pronto para arrebentar a ponte?”
“Já”.
“Então, larga-lhe o lume!”

Era de noite?
Era de noite, talvez duas, três da noite. Peguei então um cigarrito, peguei no rastilho, que tinha a ponta com cordão detonante e trotil, e peguei fogo.
“Já está? Salta aqui para o jipe!” Então quando íamos talvez aí à distância de uns 100 metros, aquilo parece que até o jipe levantou. Então fomos embora, isto eram umas duas, três da manhã.

O seu quartel era onde?
O quartel da minha unidade era em Pondá, mas eu estava destacado em Bicholim, que era na fronteira. Era numa companhia de Cavalaria, eu estava lá destacado e mais uns quantos de Engenharia, porque eles eram só de Artilharia.
E de maneira que chegamos lá a um certo sítio, de manhã já nasceu o sol, e diz um assim: “Olha lá!” – Via-se a mata andar, eram eles, tudo com camuflado, com uns carros com rodas, chaimites!
E então viemos andando, viemos andando, para nos começarmos a juntar, o nosso destino era chegar ao Altinho, que era já na capital, Nova Goa, ou seja, Pangim. Quando chegamos à cidade estava completamente deserta, não se via ninguém. Fomos então lá, onde era o bairro dos oficiais – mas uns dias antes o governo já tinha mandado evacuar as mulheres e as crianças, vieram todos para Portugal.
Aí pernoitámos e no outro dia de manhã apareceram então os Indianos, já a gente tinha arrumado tudo lá para um canto (jipes e espingardas, tudo). Estiveram a conversar com os nossos oficiais. Tudo formado. Tudo formado, viemos por aí abaixo em formatura, fomos maltratados no caminho por aqueles que estavam à nossa espera, os civis: “Seus malandros, vão para Lisboa!”
Chegamos ao pé do Quartel-General, onde estava a nossa bandeira. Isto ainda hoje me comove: eles deitaram a nossa bandeira abaixo, deitaram a nossa bandeira ao chão. Ainda hoje, a mágoa que eu tenho mais, é ver a nossa bandeira ser pisada…
Depois levaram-nos outra vez lá para o Altinho, estivemos lá então uma semana, talvez. Não tínhamos água, a única água que tínhamos lá para beber era da piscina. Comida: eles lá faziam umas comidas à maneira deles, um feijão-frade, com o couve, a granel para dentro com o bicho e tudo.
Ali tivemos uma semana, depois é que fomos para Pondá, para o campo de concentração de Pondá.

Eram muitos prisioneiros?
Mais ou menos, para lá de mil, talvez. Não havia só o campo onde eu estava, Pondá, havia mais campos, parecia que era na Aguada, em Alperqueiros, havia mais.
Não tratavam mal a gente, Íamos para os rios, tirar as pedras das pontes que a gente tinha destruído. E assim foi passando o tempo, até que houve uma vez em que esperávamos todos que acabasse num fuzilamento.
Havia uma camioneta que andava a fazer limpeza lá dentro do campo e houve três prisioneiros que se esconderam debaixo do lixo, para tentar fugir. E andava um furriel a acompanhar aquilo. Aqueles três esconderam-se, mas o furriel foi comunicar ao comandante do campo que iam três os prisioneiros a fugir, e quando chegaram à porta de armas, foram apanhados.
De maneira que aquele povo, os prisioneiros, quando viram que o furriel tinha feito uma asneira tão grande, queriam matá-lo, queriam liquidá-lo.
O comandante do campo comunicou para o Governador de Goa, o general Candeth, daqueles Sikhs com turbante e esse mandou formar tudo na parada. A malta queria torcer o pescoço ao furriel e o general pensava que os prisioneiros estavam revoltados, mandou formar frente a nós um pelotão de fuzilamento: dia 19 de março de 1962: “Aquele que se mexer é abatido!” Ficámos ali 45 minutos na parada.
Depois, um padre, que era o Ferreira da Silva – que ainda não há muito tempo que ele faleceu, ainda houve missa por ele em Fátima, eu não fui mas mandei rezar aqui em Alfarim – esse padre manda-se para o chão e foi de rastos, talvez uns 20 ou 30 metros, foi ao pé do general Candeth e esteve-lhe a contar tudo, com as ladainhas da Igreja. E pronto, mandaram-nos destroçar.
As nossas camas eram uns cartões cheios de percevejos, na terra! Passámos lá uns cinco meses, saímos de lá no dia 10 de Maio de 1962 para Karachi, apanhámos o avião para Karachi, no Paquistão, de lá é que fomos evacuado – estavam lá os navios portugueses Vera Cruz (que já tinha saído), e eu vim no Pátria e ainda vinha o Moçambique, três navios que foram a Karachi buscar os prisioneiros
Chegámos a Portugal e fomos tratados como traidores, por não morrer ao serviço da Pátria, para sermos heróis. Os oficiais foram destituídos dos cargos, foi o Vassalo e Silva, que era o comandante geral do estado português da Índia e o comandante militar, o brigadeiro António Leitão. O meu comandante, do destacamento de Engenharia, major Tribolet… todos foram destituídos dos cargos.

José Manta durante a comissão na Índia e quando
recebeu a Medalha de Reconhecimento, em 2003.

E depois, foram desmobilizados?
Eu cheguei a Portugal e mandaram-me para casa, fui posto fora das forças armadas, não é? Passei à disponibilidade. Depois emigrei.

Foi para onde?
Emigrei para Alemanha, para a pesca do bacalhau. Primeiro eu tinha ido para o Arsenal do Alfeite, mas naquela altura ganhava apenas 44 escudos por dia. Ia, para o Arsenal do Alfeite, de bicicleta a pedal! Ia de Alfarim, pelo Marco do Grilo, até que chegava ao Laranjeiro, havia Portão Verde, era o Arsenal do Alfeite

Todos os dias?
Todos os dias! Depois um irmão meu que morava lá em Almada, lá numa barraca, eu passei a dormir lá, num armazém de ferro velho, de noite as ratas passavam por cima de mim.

E fazia o quê, no Arsenal?
Era servente, a bordo dos navios, a varrer o lixo que os operários faziam. Depois surgiu uma oportunidade de ir para a Alemanha, havia umas inscrições para os militares.

Na Alemanha, em que sítio é que esteve?
Estive em Bremerhaven, que é um porto. Ia para o mar e para a Gronelândia, para a pesca do bacalhau. Então eram campanhas longas, eram muito tempo a bordo.

Quanto tempo estavam no mar?
Quando era pesca de peixe fresco, eram duas semanas. Quando era peixe para congelar, eram dois meses no mar.

E qual era a técnica de pesca?
Era o arrasto, pesca do arrasto. Ao fim de seis meses, eu nunca tinha visto tanto dinheiro: fui lá ao banco, e depois lá no banco enviava o dinheiro para a minha mulhconstier. Já eu era casado, eu tinha uma filha, nessa altura, quando emigrei. Depois vim a Portugal, estive cá um mês e fui outra vez para a Alemanha. Quando lá cheguei a companhia diz-me: “Mas tu já cumpriste o contrato!” – que eu fui lá com o contrato de seis meses – “Olha, não há mais trabalho”.

Não lhe renovaram o contrato?
Não. Disseram-me: “Olha, queres ir para a África? Temos lá um navio em África que precisa de gente. Mas estás lá um ano e não voltas cá”.
E eu: “Pois claro que quero, não quero é ir para Portugal”, lá. Então fui de carro de Bremerhaven para Bremen, depois de avião de Bremen para Frankfurt, de Frankfurt para Londres, e de Londres para a Namíbia – Vinduque!
Era eu, dois ou três alemães, e eram três portugueses, era um de Peniche, era outro de Mira. Mas esse de Mira não tinha levado a vacina, no aeroporto não o deixaram seguir e eu digo assim “É pá, esses cabrões aqui pegam por tudo!”. Diz logo um que lá estava na aduana: “Ah, tu és português? O que é que vens para aqui fazer, pá?” – “Olha, estava na Alemanha, agora fui mandado para aqui.
Fui então para a Namíbia, para o porto de pesca lá, era Valdisbey. E dali é que a gente depois andámos quase meio-dia pelo o deserto da Namíbia fora, até lá chegar, de autocarro. Parámos lá num sítio, havia um oásis, almoçamos, chegámos a Valdisbey, vai, vai, tira essa roupa, ah, mar: três meses!

José Manta e a sua esposa Alcina Margarida Amiano Manta.

Era que tipo de pesca?
Era arrasto, lá era a pescada, a maruca e o tamboril. Do tamboril era aproveitada uma parte e a outra parte era para uma farinha que eles chamavam o “fish milk”. Lá estivemos quase um ano.
Depois o navio, no último lance, o lance que fecha, fazíamos três ou quatro lances, três meses, viemos para Lisboa, ai, para Lisboa, para Brema, Brema Abre, e dali foi para a veste do Natal, do ano de 60, 67, na veste para o Natal, passei lá o Natal, passei dois Natais lá fora, e depois vim para Portugal, olha, nunca mais não voltei.
Depois vim para Portugal, nunca mais lá voltei. Estive aqui 5 anos a trabalhar nas pedras, nos mármores e cantarias, no Zambujal, que eu tinha essa profissão. Depois regressei novamente ao Arsenal, andei lá 20 anos, desde 1973 até 1993. Eu já tinha lá conhecimentos com o engenheiro da Construção Civil e ele meteu-me como ajudante de pedreiro, e eu aprendi a pedreiro também.
Há lá uma oficina que era de manutenção geral, manutenção geral a nível do Arsenal do Alfeite, com serralheiros, com caldeireiros, com eletricistas, e pintores. Até que fui eu como pedreiro, dar colaboração.
Agora já estou reformado, já me reformei em 1993. Vim aqui para o Zambujal para a oficina do Maravilhas, andei lá há 9 anos. Eu tinha andado no que chamava o Zé Casaca. Andei lá – eu sabia trabalhar nos mármores. Depois aquilo foi enfraquecendo, as obras foram enfraquecendo e eu vim-me embora.
Depois ainda me mandaram chamar e a minha mulher disse “Já não vais mais, deixa-te estar aqui que a gente já precisa descansar, já estamos velhos.” E agora tenho umas hortazitas, olha!
Agora ao fim de quarenta anos é que me deram um subsídio de prisioneiro de guerra Tenho o subsídio de prisioneiro de guerra mas é pouca coisa, não tenho vergonha de dizer, cem euros. Quando deram foram cem euros, agora já tem havido uns aumentos. Agora este aumento que houve deram-me cinco euros da pensão de guerra.

João Augusto Aldeia

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Director do jornal O Sesimbrense