uma crónica de João Gomes Pólvora (1930)
Há 30 anos, quem exercia a profissão de albardeiro ou correeiro, indo viver para Sesimbra, arranjava uma clientela tão numerosa que não tinha um momento de descanso – salvo seja – a trabalhar para tanto animal…
Os tempos, porém, foram mudando progressivamente e as camionetas, proporcionando à condução de peixe maiores vantagens em rapidez, vieram acabar quase “in toto” com as antigas carroças, indo à viola, cavalos, mulas e correeiros. Outro tanto não sucedeu aos burros, q a nossa gente terá de gramar pelos séculos sem fim, atropelando os transeuntes na rua do Espírito Santo, por falta de melhor “aplicação”, quando descem vertiginosamente essa artéria mais movimentada da vila. Submetidos ao rigor das mais bárbaras violências nas mãos dos garotos do “costais”, os pobres burros lá continuam, por condescendência do “progresso”, ao serviço das camionetas, com o mesmo espírito de sacrifício com que transportavam há três décadas de anos, os maquinos de peixe para as carroças do Rasteiro, Chanoca, Zé Pité e outros almocreves, que os traziam sempre bem tratados e tosquiadinhos a capricho pelo Manuel Raposo, um hábil tosquiador que hoje faria inveja ao mais afamado profissional em cortes de cabelo à garçon!…
Com os burros também ficou um correeiro em Sesimbra, que muitos afirmavam possuir várias propriedades em Alhandra, único do seu ofício, que por muitos anos suportou com resignação a enorme crise de trabalho sobrevinda inopinadamente ao aparecimento da camioneta. Com a oficina na rua do Espírito Santo, junto ao estabelecimento de José Pedro da Mata, mesmo em frente da barbearia do João Guerra, o velho correeiro ali se manteve alguns anos, até ao “momento fatal” em que sofreu maior suplício… que o burro mais arisco na mão dos rapazes dos “costais”, quando caem… em deitar a carga ao chão! E ainda hoje conservando umas vagas reminiscências do seu passado, é com magoada tristeza que ele recorda a má hora que a sua mesquinha ambição lhe proporcionou certa noite em Sesimbra.
O tio António Correeiro, extremamente avarento, não podia ver cair um carapau de um maquino, que não viesse logo à rua para lhe deitar as unhas, como gato esfomeado, mesquindade que o próprio vizinho Guerra, de pouco mais restritas economias, censurava asperamente nas suas conversas particulares. E esse feitio de usurário relapso, criou-lhe grande antipatia, do que resultou, mais tarde, ser vítima de uma brincadeira que o ia mandando desta para melhor. Comilão de “grande classe”, não podia resistir ao primeiro oferecimento que se lhe fizesse por dever de boa educação. O mestre correeiro frequentava assiduamente a loja de Sebastião Maduro, no largo da Fonte, aonde aguardava com impaciência todas as noites, a chegada de vários rapazes soldadores, ao tempo meus colegas, q ali se reuniam a saborear de vez em quando os seus petiscos, de q ele sempre compartilhava em larga escala, alambazando-se com enorme sofreguidão. Eduardo Santana, Faustino Simplício, Manuel Pinto, Saraiva, Olegário e os irmãos Ciprianos, eram as criaturas mais castigadas pela sovinice do mestre correeiro. Mas era de prever que essas economias constantes do tio António à custa alheia, não podiam perdurar e alguma vez deviam ter fim, como de facto sucedeu, em bem lamentáveis condições!…
Enfastiados de tanta exploração do velho proprietário em Alhandra, alguns desses rapazes combinaram uma partida que devia servir de ponto final à guloseima do mestre correeiro e, uma noite, prepararam magnífica ceia de pescada com batatas, convidando o homenzinho a tomar parte na patuscada, o que ele logo aceitou, prevendo pançada para três dias, pelo menos… A petisqueira estava óptima, com pimentinha a pedir vinhaça, e um dos presentes colocou ao pé do mestre correeiro uma garrafa de vinho tinto, que o chupista não tardou em despejar, acompanhando algumas postas de peixe, devoradas com a máxima rapidez!…
Mal sabia ele, coitado, que o vinho dessa garrafa continha uma mistura de efusão de folhas de sene em dose bastante elevada! Mestre correeiro encheu o bucho estupidamente, dando fim ao vinho-laxante num abrir e fechar de olhos… e os efeitos purgativos da droga não se fizeram esperar. A ceia corria bem!…
Em todos os convivas reinava a maior alegria e franca animação!… Só o mestre correeiro se mantinha à mesa triste e acabrunhado, dando sinais de grande indisposição… E o pobre homem, não podendo suportar por mais tempo o movimento acelerado das tripas, saiu curvado pela porta fora, a fazer caretas de provocar o riso ao sisudo proprietário da locanda. Mestre correeiro correu em direcção à praia e a rapaziada, rindo a bom rir, oferecia-lhe pedaços de jornais, o que levou o velho ao convencimento da cilada em que tinha caído.
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NOTAS:
Crónica publicada originalmente em 19 de Novembro de 1930
– Costais: cestos para transporte de peixe.
– Maquinos: alcofas para transporte de peixe. Desde o início do século 20, as carroças (e, depois, as camionetas) eram obrigadas, por postura municipal, a ficar na “praça das carroças”, construída para esse fim pela Câmara à entrada da vila – hoje, largo dos Bombeiros Voluntários. O peixe era transportado em burros, desde a lota da praia até esta praça.
– Mesquindade o mesmo que mesquinhez
– Manuel Pinto: Manuel Pinto Coelho.
– Saraiva: Joaquim Fernandes Saraiva jr.
– Olegário: Olegário da Silva Frade.
– Folhas de sene: folhas da planta “Cassia angustifólia”, com propriedades laxantes.