1º encontro de retornados do Hotel do Mar

No passado dia 23 de outubro de 2022, realizou-se o primeiro encontro de retornados do hotel do Mar, no hotel que foi o lar, o refúgio, o porto de abrigo de muitos refugiados e retornados fugidos à guerra em Angola e que recomeçaram as suas vidas do zero, mas que nunca se esqueceram de Sesimbra e retornaram para comemorar este indelével acontecimento, na terra que os acolheu há 47 anos atrás.
Fomos conhecer o grupo de refugiados e retornados de Angola e entrevistamos dois dos seus elementos que organizaram este original encontro, Suzete Santos e Fernando Baptista e obtivemos os seus testemunhos que aqui transcrevemos aos nossos leitores. As duas entrevistas serão publicadas nas próximas duas edições. A primeira entrevista com a Suzete Fátima Lopes Fernandes Santos e a segunda entrevista com o Fernando da Costa Baptista, dois testemunhos que recordam e retratam na primeira pessoa acontecimentos marcantes que transformaram de forma abrupta as suas vidas.

Suzete Santos

Suzete Santos nasceu no dia 5 de setembro de 1961, às 21:30H na casa da avó materna na cidade de Moçâmedes. A última a juntar-se aos seus três irmãos, duas meninas: A São e Lilia e menino: o Beto.
Os pais da Suzete viviam na Baía dos Tigres, a cerca de 100 milhas de Moçâmedes, era um grande centro piscatório. O seu pai era motorista marítimo, viveu aqui até aos quatro anos, altura que os seus pais foram viver para Porto Alexandre, hoje (Tômbua) continua a ser o maior centro piscatório do país.

Como se chama?
Suzete Fátima Lopes Fernandes Santos

Qual é a sua idade?
61 anos

É natural de Angola? Se sim de que região?
Sou natural de Angola do sul de Angola, nasci em Moçâmedes, mas vivia em Porto Alexandre.

Que recordações tem sobre a sua adolescência em Angola?
As recordações são as melhores de uma jovem de 14 anos cheia de sonhos e esperança num grande futuro. Era muito feliz com amizades que ainda hoje perduram.

Estudava ou trabalhava?
Estudava no primeiro ano do curso geral de administração e comércio.

Como decorreu a saída de Angola e o que sentiu quando aterrou no antigo aeroporto da Portela o que sentiu?
Jamais esquecerei aquele dia 21 de outubro de 1975 quando às 10 horas da manhã entrámos para dentro do navio de carga “Lobito” que nos iria levar para Luanda numa viagem de 24 horas. Que viagem meu Deus, para onde? Que destino seria o nosso? Que tínhamos nós feito de mal para estarmos a abandonar a nossa terra perguntavam os mais velhos. Porque abandonávamos tudo, porque deixávamos as nossas casas com a chave na porta, as camas feitas, a louça lavada, a roupa estendida como se fôssemos voltar no dia seguinte.
Porque escutávamos o bater dos martelos ao fim do dia e o serrote a serrar tábuas de madeira numa pressa louca de colocar lá dentro alguns bens materiais uma vida resumida num simples caixote para ser despachado na alfândega rumo a Lisboa. Quantos caixotes carregados, ficaram pelo caminho, mas tínhamos que fugir da guerra…
A saída de Angola foi muito triste sair do Porto de Moçâmedes no dia 21 de outubro de 1975 pois os meus pais decidiram que era o melhor para a nossa família não passarmos a independência em Angola pois temia que algo de grave pudesse ocorrer E assim preferiu virmos todos para Portugal.

Veio acompanhada pela sua família ou veio sozinha?
Eu vim acompanhada pelo pai, mãe, três irmãos um cunhado e duas sobrinhas; uma com 2 anos e a outra com apenas 6 meses de idade. A saída de Moçâmedes foi muito atribulada pois pensávamos que ia ser só por um breve período do tempo e que voltaríamos assim que fosse possível. Viajarmos num porão do navio de carga do Lobito com centenas de pessoas a bordo sem condições de higiene, mas estávamos seguros.
Ao fim de um dia chegámos a Luanda e desembarcamos no Porto de Luanda de rumo a um campo de paraquedistas onde está estavam militares da tropa portuguesa para nos proteger e é claro que era um campo muito grande de refugiados onde não havia água, nem luz nem alojamento para toda a gente, havia tendas militares que serviam de abrigo para quem quisesse mas os piolhos eram muitos e outros bichinhos e então dormimos numa caserna onde havia grandes filas para se conseguir um prato de sopa e fomos alimentados nesse período com ração de combate da tropa portuguesa apesar de ouvirmos alguns tiros perto do acampamento.
Aí ficamos uns dois dias após esse período fomos em camiões da tropa para o aeroporto de Luanda que estava completamente cheio de aviões e de milhares de refugiados. E era o salve-se quem puder e com muita sorte conseguimos voo no avião da TAP. Ao fim de 7:30H de viagem chegámos ao aeroporto da Portela em Lisboa saímos do avião sempre em fila indiana estava um grupo da cruz vermelha a colar-nos uns autocolantes no peito nessa altura a sensação que tive é que éramos considerados quase como que gado e foi uma sensação muito desagradável logo a seguir deram-nos um saco de plástico com uma maçã, uma sandes de mortadela e um queque.
Ao chegar ao aeroporto as mulheres que traziam crianças eram encaminhadas para um local a fim de ser dado um banho e alimentação e roupa para quem não tinha trazido nada apenas a roupa do corpo e aí ouvíamos umas palavras de carinho e a seguir fomos à procura de lugar para nos instalarmos recordo que nós trouxemos alguma bagagem pessoal connosco e nada se perdeu durante o trajeto.
A chegada no aeroporto havia centenas de pessoas a dormir no chão sem condições nenhumas era o salve-se quem puder e nós procuramos um sítio onde ficámos debaixo de um telheiro ao relento já fazia um bocado frio à noite, mas dormimos em cima de papelão e como tínhamos cobertores que nos tinham dado dava para descansar. Havia muitos voluntários que nos serviam dia e noite leite com chocolate e pão com mortadela para matar a fome.
Não foram dias fáceis (4 dias) eram filas enormes para tudo, mas nós jovens éramos muito unidos e havia um espírito muito grande de entre ajuda. O governo português só autorizou a transferência de cinco contos por cabeça de casal. O dinheiro de Angola não valia nada.

Já tinha ouvido falar de Sesimbra em Angola?
Sim, em Moçâmedes havia famílias oriundas de Sesimbra que tinham emigrado e nos bailes em casa de amigos dos meus pais, tipo passagem de ano às tantas toda a gente estava a dançar o Ribolé e a Praia de Sesimbra que eram tocados no gira-discos.

Sesimbra como refugio quando e como surgiu?
Sesimbra como refúgio, surgiu ainda no aeroporto, de vez em quando havia uma comunicação de oferta de alojamento para vários lugares nomeadamente hotéis, pensões, residenciais, casas particulares, castelos, ex-prisões, tudo serviu para albergar refugiados, e então quando chegou a nossa vez e ouvimos o nome de Sesimbra o meu cunhado que era funcionário público e tinha que se dirigir muitas vezes a Lisboa pensou logo que ficava perto e também tinha mar por causa do meu pai vir a poder trabalhar e então foi logo a primeira opção e assim viemos para Sesimbra e para o hotel do Mar.

Recorda-se como foram as primeiras impressões quando chegou a Sesimbra?
Vinha muito cansada, mas recordo-me que gostei muito principalmente quando vi o mar.

Como ocupava o seu dia-a-dia?
Eu estudava e era Hotel – escola – Hotel. No hotel convivíamos uns com os outros, fazíamos grandes festas de aniversário, com música, pregava-se partidas uns aos outros, enfim muita alegria.

Nessa altura retomou os estudos ou foi trabalhar?
Retomei logo os estudos na Escola Navegador Rodrigues Soromenho.

Quais foram os organismos que apoiaram o vosso grupo?
Fomos apoiados pela Cruz Vermelha Portuguesa, ONU (Organização das Nações Unidas) e pelo IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais).

Como se processavam as ajudas?
Quem precisava dirigia-se a Lisboa à Cruz Vermelha Portuguesa, o IARN pagava a nossa estadia no hotel do mar e também havia pessoas da comunidade sesimbrense que reuniam alguns bens essenciais para doação.

Como foi a sua integração na comunidade sesimbrense?
Nunca me integrei, só muito mais tarde, o convívio era apenas com os retornados.

Quanto tempo ficou hospedada no hotel do Mar?
Foi de outubro de 1975 ao verão de 1977 (não me recordo a data)

Quais foram as recordações que reteve desses tempos?
As amizades que ficaram para a vida, o espírito de entre ajuda, um carinho enorme por todos os funcionários do hotel que até hoje mantenho algum contato. Éramos uma grande família.

Como era passado o Natal no hotel do Mar?
O primeiro Natal foi muito marcante, o hotel proporcionou-nos um jantar especial e através de um peditório que fizemos junto da população sesimbrense foi possível comprarmos uma pequena lembrança para cada criança.
No hotel também estava alojada a família Prazeres nossos conterrâneos e amigos de Angola.

O seu pai já tinha tido experiência nas pescas ou foi uma solução de recurso e/ou de sobrevivência naqueles tempos?
O meu pai chamava-se José António Pinto Fernandes, sempre foi pescador e motorista. O meu pai depois de ter procurado trabalho na doca e não ter conseguido, foi quando surgiu a oportunidade de fazer parte da Cooperativa de Pesca Direito ao Trabalho, juntamente com o Eduardo Prazeres foram para a Figueira da foz procurar o barco ideal e iniciaram nova vida, juntamente com outros sesimbrenses.
O meu pai sempre foi muito respeitado por todos e havia boa camaradagem. Mais tarde o meu irmão também foi trabalhar para a Cooperativa onde permaneceu até ser extinta. Entretanto dá-se o acidente de trabalho a bordo de outro barco quando apertava uma peça. Eram 12:15 horas do dia 25 de junho de 1983 no mar, ao largo dos Açores e que tira a vida ao meu pai o que foi um choque brutal para toda a família.

Acabou por criar raízes em Sesimbra, como tudo aconteceu?
Sim, casei-me com um pexito e temos um filho de 31 anos.

Conseguiu arranjar trabalho em Sesimbra, se sim, que tipo de trabalho?
Consegui através de um concurso entrar para o Ministério da Educação na Escola Preparatória de Sesimbra – contínua de 2ª classe, entretanto mudei de categoria e fui trabalhar para a Escola Básica do Castelo e hoje sou assistente técnica no Agrupamento de Escolas de Sampaio.

Recorda-se da letra do hino do hotel do Mar?
Sim, a direção do hotel do mar em determinada altura penso que antes do verão de 1976, resolveu dividir o hotel ao meio isto é: nós ficamos com a vista para o mar e os turistas para a piscina e ficamos sem acesso à mesma.
Então a parte do hotel onde estavam os retornados passou a chamar-se Hotel Jalgon, então nós resolvemos fazer uma festa onde recriámos vários episódios cómicos ocorridos no hotel, e foi criado o Hino do Hotel Jalgon com letra do nosso saudoso amigo Lilito Brasão. Letra do hino do Hotel Jalgon:

Hotel do Mar afamado,
estás mal do toutiço,
foste posto de lado
que temos com isso?
Agora é que é bom,
temos o Jalgon,
que nos vai fartar
e viva a alegria,
porque neste dia
vamos festejar!!!

A música original é Cantigas da Rua/marcha popular.

Equacionou a hipótese em emigrar para outro país?
Nunca equacionei emigrar. Apenas o sonho de voltar um dia à minha terra.

Quem teve a ideia de organizar o encontro de retornados e refugiados de Angola no hotel do Mar?
A ideia foi minha e do Fernando e tinha que ser no Hotel do Mar, porque só lá, fazia sentido. Contávamos com mais amigos, mas por diversas razões não puderam vir, mas tenho fé que o encontro deste ano vai ser um grande evento. Revi amigos que há 47 anos não via. Foi muito bom mesmo. Para este evento contámos com a ajuda preciosa da nossa presidente da junta de Freguesia do Castelo que prontamente se disponibilizou.

O que sentiu quando tomou conhecimento da realização do 1º Encontro de retornados e refugiados de Angola no Hotel do Mar realizado no passado dia 23/10/2022?
Uma alegria imensa e responsabilidade, mas correu tudo bem e toda a gente adorou, tanto que vamos repetir.

Os elementos do grupo que estiveram instalados no hotel do Mar, mantiveram o contato entre si?
Estamos em contato e é sempre uma alegria quando nos encontramos quer seja nas redes sociais ou pessoalmente, entretanto uns emigraram outros já partiram mas ainda mantenho contato com muitos ex-residentes do hotel do mar. Relembro que tal como eu houve muitas famílias que optaram por ficar em Sesimbra criando aqui as suas raízes.

O que sentiu quando reviu os restantes elementos?
Foi voltar atrás 47 anos e muita emoção e foi um recordar de histórias ali passadas, bons momentos, reavivar a memória e sorrir muito, foi muito bom mesmo.

Passados estes anos todos, voltou a Angola?
Sim em 2019, voltei a Angola e fiz a minha viagem de retorno, ainda hoje não acredito!!! Viajei na TAP, aterrei no aeroporto de Luanda, fui ao Porto de Luanda, viagem de carro de Luanda para Moçâmedes e fui ao cais do porto de onde saí e voltei a Porto Alexandre à minha antiga casa. Fiz a viagem ao contrário.

O que achou desta iniciativa?
Achei esta iniciativa de louvar pois muita gente não sabe ou não se recordam da nossa chegada a Sesimbra.

João Silva

Fernando Baptista

Como se chama?
Fernando da Costa Baptista.

Qual é a sua idade?
65 anos.

É natural de Angola? Se sim de que região?
Sim, Benguela.

Quando veio para Portugal estudava ou trabalhava?
Estudava no 1º ano do Instituto Superior de Engenharia de Nova Lisboa (atual Huambo).

Como decorreu a saída de Angola e o que sentiu quando aterrou no antigo aeroporto da Portela?
Uma aventura. Estudava em Nova Lisboa e os meus pais e 10 irmãos estavam em Benguela. Como não havia ligações entre as 2 cidades, fui a Benguela de boleia numa coluna de carros (era a única forma de se viajar em Angola), convencido ainda que iríamos ficar em Angola (como a maior parte das pessoas que depois acabaram por vir). Chegado a Benguela e dado que já havia a decisão de apenas ficarem os 3 irmãos mais velhos (eu e mais dois, sendo eu o segundo mais velho), na tentativa de salvaguardar o património contruído pelo meu pai ao longo de 28 anos. O meu pai e mais 6 irmãos menores viriam para Portugal. Como tal e dado que tinha as minhas coisas em Nova Lisboa, resolvi ir buscá-las. Primeiro indo para Luanda de barco como “clandestino” (acompanhando os meus tios) e depois iria para Nova Lisboa de avião militar.
Chegando a Luanda, sou informado que a pessoa proprietária da casa onde eu vivia (pessoa essa que foi responsável pela carta de chamada para o meu pai ir para Angola), também já tinha decidido vir para Portugal, porque foi assaltado na própria casa em pleno dia. Assim sendo, só me restava voltar para Benguela, onde iria ficar juntamente com os meus dois irmãos. Essa vontade tornou-se impossível de concretizar porque não havia ligações entre Luanda e Benguela. Ia todos os dias ao porto de Luanda na esperança que algum barco fosse para Benguela e isso nunca aconteceu.
Como tal e dado que vivia com uma tia, fiz o que toda a gente fazia naquela altura, dar o nome para embarcar e ficar os dias agarrado ao rádio à espera de ver se o voo correspondente ao nº que tinha sido atribuído tinha data marcada, o que muitas das vezes era para o próprio dia. Tendo em conta que a minha inscrição tinha sido feita em separado da minha tia e dois primos acabei por viajar sozinho com uma mochila de bagagem. O que sentia era tudo uma incerteza, mas com 18 anos e viajar para outro país que não conhecemos, acaba sempre por ser uma aventura.

Veio acompanhado pela sua família ou veio sozinho?
Como referido anteriormente, fiz a viagem sozinho, mas acabei por encontrar a minha tia e primos no aeroporto (não sei como no meio da confusão). A bagagem tínhamos de ir buscar no dia seguinte a um armazém em Sacavém, e escolher a que nos correspondia no meio da bagagem de toda a gente.

Já tinha ouvido falar de Sesimbra em Angola?
Só dos jogos que tínhamos no intervalo das aulas em que um de nós escolhia um lugar no mapa de Portugal e os outros 2 tinham x tempo para descobrir. Foi o único “contacto” que tive com Sesimbra.

Sesimbra como refugio quando e como surgiu?
Não faço ideia, já que essa atribuição pertencia ao IARN, e iam distribuindo as pessoas pela unidades hoteleiras, não faço ideia com que critério.

Recorda-se como foram as primeiras impressões quando chegou a Sesimbra?
Foi estranho, porque chegamos cerca das duas da manhã e o motorista enganou-se no local e paramos numa zona à entrada de Sesimbra. Percebido o engano tivemos de tornar a entrar e fomos então par o Hotel. Era tudo uma grande confusão, porque tivemos de dormir 3 dias no aeroporto e como tal, o facto de ter uma cama para dormir sobrepunha-se a qualquer sentimento que na altura se quisesse ter.

Como ocupava o seu dia-a-dia?
Numa fase inicial, ia a Lisboa tentar a inscrição no ISEL (Instituto Superior de Engenharia de Lisboa), o que na realidade não foi conseguido, tendo-me sido dito pelo responsável da secretaria que pendurasse numa moldura como recordação, o certificado que trazia para a transferência do Instituto, já que não servia para nada. Outro dos motivos era o de tratar de papelada que teria a ver com a nossa legalização e isso era na rua da Junqueira em Lisboa. Tirando essa parte burocrática e após começar a conhecer outras pessoas que estavam no Hotel, começamos por começar a descobrir Sesimbra, não só a Vila mas também zonas limítrofes como seja a hoje famosa praia do cavalo.

Quais foram os organismos que apoiaram o vosso grupo?
IARN e outros que se criaram na Vila de Sesimbra dos quais não sei se tinham algum nome específico.

Como se processavam as ajudas?
Com distribuição de roupa de inverno, dado que a maior parte das pessoas não vinha preparada para as temperaturas frias de Portugal.

Como decorreu a vossa integração na comunidade sesimbrense?
Correu bem duma forma geral. Numa fase inicial com pequenos atritos perfeitamente compreensíveis se pensarmos que a maioria da população de Sesimbra, não tinha condições para passar uns dias num Hotel famoso e bonito como o Hotel do Mar e de repente aparecem uns fulanos não se sabe de onde e como e têm direito a ficarem hospedados naquela que seria a melhor unidade hoteleira, o ex-libris da Vila. Enfim, ultrapassada essa fase inicial e em contacto directo, penso que a integração correu muito bem, sendo que muitos acabaram por ficar a trabalhar em Sesimbra.

Quanto tempo ficou hospedado no hotel do Mar?
Cerca de 2 anos.

Como era o relacionamento entre os funcionários do hotel e o vosso grupo?
Se tivermos em conta, que não foi uma situação normal, já que uma coisa é um funcionário ter contacto com um turista que dura uma semana ou duas, outra coisa é um contacto de dois anos que leva ao cansaço não só do trabalhador, como também a todos os que lá foram parar contra a sua vontade. Se por um lado leva ao cansaço por outro também leva a que as relações se tornem muito mais próximas, criando-se até amizades que não seriam normais numa estadia de uma semana em que os hóspedes mal param no hotel.

Quais foram as recordações que reteve desses tempos?
Muito boas, daí que Sesimbra tenha fica para sempre como a Vila que me acolheu e estará sempre no meu coração, arriscando até que estará no coração de todos os que tiveram como primeiro contacto essa bela Vila.

Chegou a criar raízes em Sesimbra?
Não, porque entretanto fui viver com uma irmã.

Como era passado o Natal em Sesimbra?
Nunca passei o Natal em Sesimbra, ia passar com os meus pais numa aldeia do norte de Portugal, para onde foram os meus pais quando chegaram a Portugal com os seis irmãos menores.

Conseguiu arranjar trabalho em Sesimbra, se sim, que tipo de trabalho?
Sim, na pesca com o mestre Chico Avelino. Aquando do pedido para trabalhar na pesca o mestre informou-nos, a mim e ao Osmar Moreira que seria necessária a cédula marítima, pensando na sua boa-fé que iríamos desistir, o que não aconteceu. Fomos fazer o exame de natação como era obrigatório e aparecemos com as cédulas. O mestre com a sua experiência de vida, perante dois miúdos que só lhe iriam causar problemas se fossem ao mar, achou por bem que começássemos em terra a estender aparelho como era normal iniciar a atividade piscatória. Depois disso passamos a empatar anzol e iscar, ao mesmo tempo que a percentagem de salário também ia subindo, consoante essas aptidões iam evoluindo.
Dou sempre o exemplo como trabalho comunitário da forma como se desenvolvia, ou seja, se o barco fizesse uma boa pescaria, era bom para todos porque o dinheiro era dividido por todos (por partes diferentes como é lógico), mas era dividido logo ali após a venda na lota e ainda éramos contemplados com um peixe-espada ou uma chaputa, que no nosso caso dava para vender a um restaurante ou trocar por umas refeições. Lembro-me do restaurante Sesimbrense, onde chegamos a ter um acordo para pagamento mensal das refeições.

Recorda-se da letra do hino do hotel do Mar?
Não. Fui recordado no 1º encontro que fizemos em 21 de Outubro de 2022. Este hino tem uma justificação. Se na altura em que chegamos a Portugal, se juntou o útil ao agradável, ou seja, devido à instabilidade criada no País com o 25 de Abril, deixou de haver turismo e ficaram os hotéis vazios.
Assim, por um lado para evitar situações difíceis para os hotéis e por outro a necessidade de se alojar os cerca de 500 mil cidadãos, foi a solução que se arranjou na altura. Passado algum tempo e com a retoma do Turismo, criou-se uma situação que necessitava de uma solução que tivesse as duas parte em conta, que seria receber os turistas, mas arranjar espaço para meter toda a gente que estava no hotel.
A solução passou por dividir o hotel em duas zonas: uma até a zona da piscina onde ficamos nós (sem acesso à piscina), outra para os turistas que seria do piso da piscina para cima incluindo o bar e restaurante, não havendo assim possibilidade de se frequentar as mesmas zonas. Do mesmo modo, foram colocados beliches nos quartos passando a ter 4 pessoas de ocupação em vez das duas (no caso de jovens solteiros), bem como realojar em outras unidades hoteleiras como sejam a pensão Náutico ou a pousada do Zimbro. Foram ainda retirados dos espaços comuns do hotel, na nossa zona, tudo que eram decorações consideradas não necessárias, incluindo até as alcatifas, como forma de não existir um desgaste, ficando apenas o essencial necessário para a natural acomodação dos hóspedes.
Neste sentido e após se ter chegado a esta solução, foi decidida organizar a tal festa com pequenos sketches incluindo o tal hino da autoria do Sr. Brasão.

Equacionou a hipótese em emigrar para outro país?
Sim, Austrália (não sei porquê).

O que sentiu quando tomou conhecimento da realização do 1º Encontro de retornados e refugiados de Angola no Hotel Do Mar realizado no passado dia 23/10/2022?
Como fui eu e o Osmar que há muito tempo vínhamos falando sobre isso, foi uma sensação de finalmente aconteceu. De realçar a ajuda que posteriormente foi dada pela Susete que vive em Sesimbra e que na realidade ajudou a tornar uma vontade em concretização.

Os elementos do grupo que esteve instalado no hotel do Mar, mantiveram o contato entre si?
Entre os que vivem naquela zona, penso que sim, mas a maioria apenas retomou o contacto virtual através do Facebook, após eu ter criado a página em 2015.

O que sentiu quando reviu os restantes elementos?
Foi uma sensação boa, tendo em conta que não nos víamos há cerca de 45 anos.

Passados estes anos todos, voltou a Angola?
Sim. Após 7 anos sem estudar, consegui finalmente o reingresso no ISEL onde terminei o curso. Em 2008 com a crise de construção em Portugal, surgiu uma oportunidade e voltei com a família, mulher e duas filhas, uma com 7 meses e outra com 2 anos e meio. Estivemos lá cerca de 6 anos, ligados à área da construção, sendo uma das condições ir trabalhar para a minha cidade Natal, Benguela, agora sim como um verdadeiro retornado.

O que achou desta iniciativa?
Foi muito boa e já está alinhavado o próximo almoço, na expectativa que venham muitos mais.

João Silva

 

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Editor
Director do jornal O Sesimbrense